Fahrenheit 451, de François Truffaut
Por Pedro Fernandes
Um clássico é um clássico e ponto. Não tinha nenhuma frase mais óbvia para justificar inicialmente uma obra apresentada na década de sessenta, 1966 para ser mais exato, de um dos grandes nomes do cinema contemporâneo, François Truffaut. Mas, o retorno a esse filme – apesar de nunca ter comentado sobre, é um filme que, nuns tempos em que o tempo me permitia algumas coisas, já havia visto, por isso o termo retorno – esse retorno se deu por localizá-lo on-line dia desses enquanto buscava algumas informações acerca da obra de Ray Bradbury, autor sobre o qual redigi algumas notas para dois trabalhos muito bons do selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, As crônicas marcianas e A cidade inteira dorme. Também Fahrenheit 451 faz parte neste projeto de reedição da editora.
Quando assisti ao
filme de Truffaut, o televisor de plasma ainda era algo de luxo. Mas, já me
chamou a atenção a presença do instrumento em cena numa época em que o aparelho comum nos países desenvolvidos ocupava o espaço de boa parte da sala de quem os tinha em
casa. A presença desse objeto em cena faz com que o telespectador viva uma sensação
temporária estranha – apesar de um futuro aumentado, o futuro da narrativa é o
presente nosso, salvo algumas insurgências como o tema central da obra, a
distopia do futuro do livro. Outro elemento que pode passar despercebido ao olhar do telespectador é a presença de um jornal cuja palavra é substituída pela imagem. Isso diz e muito das atuais mídias cada vez mais se destituindo da linguagem verbal pela fotografia e pelos ícones.
Isto é, mesmo a
distopia pode ser atualizada para a atual situação do livro; embora os níveis
de acesso a cultura tenham estado muito superiores aos do passado, embora as
formas de acesso sejam outras muito mais fáceis, verifica-se uma estabilidade
nos índices de consumo do livro, como se ainda fôssemos aquela aldeia do século
dezoito com todos os empecilhos possíveis de acesso ao livro, mesmo quando a
imprensa em plena atuação.
Numa sociedade em
que a prática da leitura passa a ser um ato altamente proibido (como foi em
muitas situações, é em algumas censuras isoladas e ainda é coisa corriqueira
noutros países), tudo o que for de livro é visto como uma ameaça. O trabalho, então,
do corpo de bombeiros desse lugar que como o tempo e a sociedade é uma
possibilidade, é o de dar fim a todos livros num processo de queima que segue todo
um ritual e um protocolo de assepsia social. Entram em cena dois atores Oskar
Wener e Julie Christie – um tanto conhecidos pela filmografia em que atuaram;
ele, por exemplo, atuou em Jules e Jim:
uma mulher para dois, e ela, em Dr.
Jivago, Coração de dragão, A vida secreta das palavras, Em busca da terra do nunca... Ele é Guy
Montag, um dos do corpo de bombeiros, entidade responsável pela assepsia do impresso;
e ela Clarisse, professora, filha de pais cuja vida está edificada em torno de
uma sólida e extensa biblioteca.
Não será necessário
aqui, depois de apresentados esses elementos tratar do andamento da narrativa.
Basta dizer que a pergunta motivadora da ação desde o encontro das duas
personagens pode se configurar como “por que as coisas são como são?” “por que eu
tenho de cumprir a obrigação em destruir uma coisa sobre a qual nunca parei
para saber o que significa?” ou ainda “por que não podemos ler os livros?” A
inteligência de Truffaut está em conseguir fazer dessas perguntas – elementos motivadores
do romance de Ray Bradbury – em peças que constituem na dorsal de seu trabalho
cinematográfico.
Se no filme o livro
se torna ameaça é por causa do triunfo de uma forma perigosa de totalitarismo. E
novamente volto a presença do televisor, meio de entretenimento que ocupa boa
parte das cenas de Fahrenheit 451. A
mídia como detentora da verdade absoluta, como produtora de uma realidade plástica,
fútil e ditadora sutil. Aqui, me pergunto: e não estamos condenados a este
modelo traiçoeiro de formação cultural? No que os meios de comunicação têm se
tornado se não em detentores de um poder de decisão unilatarelista e capaz de
produzir indivíduos cada vez mais obsedados por um engodo de vida que lhe retira
toda e qualquer forma de outras experimentações do real? Não vivemos, hoje, sob
uma ditadura disfarçada, regida por nenhuma forma de poder físico, mas de poder
psicológico impetrado pelas realidades fabricadas pela mídia? Uma ditadura cujo general é a mídia que sustém realidades comandadas
pelo poder especulativo e depreciativo do capital. Quiçá ao menos no Brasil consigamos produzir um
marco regulatório que possa por freios aos disparates e despautérios desse
poder ou, muito em breve, alcançaremos o nível do universo faz de conta de Bradbury finamente pintado por Truffaut.
Fahrenheit 451 é assim clássico duas vezes: uma, por, a partir
de uma realidade conseguir ser tão atual; outra, por atuar como um corte na
vista, a pulsão de um desassossego em relação a esse modus vivendi que vimos construindo. Isso é tudo. E explica sairmos
de uma consideração tão comum.
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