Entre Shakespeare e a página policial
Por Alfredo Monte
A editora 34 tem
apresentado um catálogo notável de traduções de clássicos, incluindo nomes escassamente
conhecidos pelos brasileiros, caso de Gottfried Keller (1819-1890) e Nikolai
Leskov (1831-1895). No entanto, quando se estuda a história do “romance de
formação”, o suíço invariavelmente é citado como aquele que escreveu a mais
importante obra nessa vertente tão fundamental do gênero: O verde Heinrich (“verde” no sentido de imaturo, isto é, em
formação); por seu lado, o responsável por uma maior divulgação, no Ocidente,
do russo foi Walter Benjamin, por meio do seu citadíssimo “O narrador”, em que
ele o toma como paradigma da atividade que dá título ao ensaio.
Keller e Leskov têm
algo em comum (além da publicação pela 34): ambos “aclimataram” tragédias shakespearianas
(ou melhor dizendo, personagens e situações que se tornaram definitivos nas
tragédias do bardo inglês) para a realidade cotidiana de seus países. Se
Shakespeare inventou o humano, como quer Harold Bloom, vejamos o que faz a sua invenção
solta pelo vasto mundo no século em que Balzac reinventou-o, ou pelo menos fez
diminuir em muito seus horizontes, colocando a comédia do humano nos trilhos do
capitalismo burguês (de onde até agora ele não conseguiu descarrilhar).
Publicada em 1856,
com outras quatro (compondo o primeiro volume do ciclo A gente de Seldvila), a novela Romeu
e Julieta na aldeia sustenta com vigor o peso da comparação com aquela que
é a mais popular tragédia (mais até do que Hamlet,
creio eu) de Shakespeare. Além do título, no primeiro parágrafo o narrador traz
à baila a intertextualidade de forma explícita: “Narrar esta história seria uma
imitação ociosa se ela não se baseasse num acontecimento verídico, demonstrando
quão profundamente se enraíza na vida humana cada uma daquelas fábulas sobre as
quais as grandes obras do passado estão construídas. O número de tais fábulas é
limitado, mas elas sempre afloram em nova roupagem e, então, obrigam a mão a
fixá-las”1.
O “gancho” sai, por
conseguinte, tanto do “teatro” (na sua acepção mais nobre) — aliás, de uma
espécie de mundo platônico-arquetípico das fábulas — quanto das corriqueiras páginas
policiais: o suicídio de um jovem casal, cujo romance era contrariado pela
inimizade entre suas famílias. E Keller dá efetivamente uma coloração à Balzac
para a situação, desvelando certas leis sociais e psicológicas de seu país,
através da criação da fictícia região de Seldvila. Fará bem àqueles que afirmam
que nossa época é pior do que as anteriores, e que a criminalidade, a violência
e o esgarçamento dos valores morais e familiares imperam de maneira nunca
vista, ler a história de Sali e Vrenchen, para aclarar (e ter menos falseada)
sua noção do passado.
O narrador já nos
adverte quanto aos falsos bucolismos, ao começar o relato com um aparente
quadro idílico, de trabalho sadio, de relações humanas cordiais e civilizadas,
em meio a uma paisagem rural inspiradora: temos dois proprietários de terras,
Manz (pai de Sali) e Marti (pai de Vrenchen) arando seus terrenos (há outro de
permeio, em estado de abandono, por falta de herdeiros oficiais), fazendo uma
pausa para usufruir do lanche trazido pelos filhos, ainda pequenos (estes, por
sua vez, gostam de se embrenhar pelo terreno sem dono e ali brincar).
Num leilão pelo
arremate daquele lote toda essa harmonia azeda: começa uma disputa infindável
(com litígios mil que arruinarão a ambos) entre Manz e Marti, de tal forma que,
quando os dois se encontram, chegam às vias de fato. Vem à tona o pior não só
deles, como também da comunidade à volta (que acompanha com interesse de ave de
rapina o saldo da quizila). Anos mais tarde, à família de Manz restará (após a
perda de suas terras) a administração de uma taberna sórdida de Seldvila (que
significa “vila dos bem-aventurados”!); e ao viúvo Marti sobrará uma parcela
ínfima e descurada da sua propriedade (um incidente violento o levará à
demência e à internação numa instituição para alienados, deixando a filha à
própria sorte). Separados por alguns anos (já que um dos lados adversários fora
viver no espaço urbano), quando Sali e Vrenchen se reencontram, percebem a
paixão mútua. Uma relação sem futuro.
E se, na primeira parte,
Keller mostrava a rigorosa engrenagem da ganância, do rancor e da depauperação,
na segunda ele apresentará um dos retratos mais marcantes da mentalidade jovem
(mesmo que atada a um destino fatalístico) já levados a cabo na ficção. A
caracterização dos detalhes da intimidade entre os dois é maravilhosa. Tem o
seu quê de irresponsabilidade, de imprevidência; o seu quê de romantismo
invencível2; e também o seu quê de conformismo revoltante: o Romeu e
a Julieta dos cantões suíços preferem a morte (após o idílio durante uma
quermesse) do que se libertar dos laços que os prendem à sua comunidade, por
medo de se tornarem “apátridas” ou “andarilhos” (o pior dos destinos, dentro da
lógica daquele meio), pois é preciso ter uma “certidão de cidadania”, sem a qual
não podem deitar raízes em nenhuma localidade.
Foi assim que a boa
gente de Seldvila (incluindo Manz e Marti, em causa própria) manteve afastado e
espoliou aquele cuja alcunha é “violinista escuro” (de provável etnia cigana),
legítimo herdeiro (todos sabem) do pedacinho-de-chão-causa-da-discórdia entre
as famílias, nunca fornecendo a ele esse documento que lhe permitiria
reivindicar seus direitos.
É por isso que,
apesar de Romeu e Julieta na aldeia
nos fazer penetrar, de um modo lindo e comovente, no cerne e na plenitude da
juventude do casal condenado, tragédia mesmo é a dos apátridas (como o
violinista escuro), a manutenção tácita da exclusão, através de táticas
burocráticas e mesquinhas. O desperdício das vidas de Sali e Vrenchen, afora a
loucura dos pais, é a falta de coragem de romperem com tal estrutura,
tornando-se párias conscientes: descendem na escala social, mas são sempre “da
aldeia”, aceitando os valores da tribo.
A tradução de
Marcus Vinicius Mazzari é exemplar, porém ele incorreu em grave erro ao inserir
determinadas notas de rodapé onde “esclarece”, invasiva e inapropriadamente,
elementos simbólicos e significados da história. Veja-se, por exemplo, a nota
6, na pág. 17, na qual acompanhamos brincadeiras e rituais infantis de Sali e
Vrenchen: “A narração dessas brincadeiras infantis no campo central compreende
detalhes (como o motivo da papoula vermelha sobre a cabeça da boneca) que
apontam simbolicamente para desdobramentos posteriores da história”!!!???
Teria sido melhor deixar
o leitor acompanhá-la com mais liberdade, sem a camisa-de-força acadêmica3.
O que ele informa caberia melhor no seu (este sim, indispensável) posfácio.
Nele encontramos a bela justificativa de Keller para seu projeto, reivindicando
seu direito (e o de todo criador) “de em qualquer época, mesmo na era do fraque
e das estradas de ferro, estabelecer um elo direto com o elemento da parábola,
da fábula — um direito que, no meu modo de ver, não devemos permitir que nos
seja subtraído por nenhuma transformação cultural”.
Em 1865, quem se
valeu desse direito, estabelecendo seu elo direto com o elemento da parábola e
da fábula na era do fraque e das estradas de ferro (que não eram novidade mesmo
num império marcado pelo atraso com relação às demais potências da época) foi o
ainda jovem Leskov (ainda assinando com pseudônimos seus trabalhos literários)
com Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk.
Também é visível a
vinculação ao noticiário policial (e os detalhes violentos e sórdidos nada
ficam a dever aos veiculados nos programas televisivos contemporâneos muito
assistidos como “Cidade Alerta” ou “Brasil Urgente”— tidos, inclusive, como
fortes formadores de opinião). Igualmente
no primeiro parágrafo o narrador explicita sua “aclimatação” (o detalhe curioso
é que como que a divide com outros — pertencentes a uma casta mais letrada, bem
entendido, para ter a referência no seu horizonte cultural): “De quando em
quando aparecem em nossas paragens uns tipos que nos fazem sentir um tremor na
alma sempre que nos lembramos deles, por mais que o tempo tenha passado desde o
nosso último encontro. E um desses tipos é Catierina Lvovna Izmáiolova, mulher
de um comerciante, outrora protagonista de um terrível drama, após o qual nossa
nobreza, usando uma expressão bem apropriada, passou a chamá-la Lady Macbeth do
distrito de Mtzensk”4.
Catierina é uma
personagem flaubertiana (explico-me adiante) que chega a extremos de tragédia,
e malgrado a sonora e expressiva alcunha, inclusive por parte da parcela mais
letrada da população do distrito, a analogia com Lady Macbeth não é
estritamente exata: como todos sabem, a personagem da peça instiga, espicaça o
marido a fim de que ele cometa os crimes necessários para chegar ao poder. Veja-se
um exemplo, a seguinte fala da personagem de Shakespeare num colóquio
exasperado entre o casal Macbeth:
LADY MACBETH: (...)
Desde já me ponho
A duvidar de teu amor. Tens medo
De ser na ação e no valor o mesmo
Que és no desejo? Queres ter aquilo
Que estimas como o ornato da
existência,
E te mostras em tua mesma estima
Um covarde, dizendo “Não me atrevo”
Depois de “Quero”, como o pobre gato
Do provérbio, que quer comer o peixe
Mas sem sujar as patas?5
Moça pobre, de
temperamento impetuoso, Catierina Lvovna conformou-se em casar com um
comerciante bem mais velho (não havia outra possibilidade para o seu futuro), e
vive por cinco anos na grande propriedade do sogro um cotidiano de isolamento e
tédio (tal como Emma Bovary), até que numa ausência prolongada do marido, ela
se envolve com um dos empregados, o mulherengo sedutor Serguiêi, e o torna seu
amante.
A paixão por
Serguiêi desperta Catierina em todos os sentidos: “... deu plena expansão a seu
gênio. Agora se mostrava uma mulher de pulso... enchia-se de altivez,
determinando tudo pela casa afora, e sem deixar Serguiêi arredar pé de perto de
si”. Para isso, ela tem de primeiramente liquidar o sogro, e o faz,
envenenando-o. Mais tarde, eliminará o marido (uma cena impressionante e brutal),
que volta de inopino.
Em tudo e por tudo,
parece ser ela a ditar as regras, a derrubar os limites, como fosse uma
ancestral da femme fatale do cinema noir. Não é bem assim: do mesmo modo como
se larga à modorra do clima e à languidez6, ao bochorno do seu
idílio adúltero, ela deixa que o aparentemente bonachão (embora cúmplice dos
seus crimes) Serguiêi a induza, é um processo totalmente inverso ao que
observamos no casal Macbeth e muito mais afim aos processos psicológicos
observáveis em Madame Bovary, em que
a fantasia pessoal tem sua parte nas transgressões de Emma, mas pesa muito mais
o cálculo dos seus amantes e “cúmplices”, que se valem dessa mesma fantasia
para manipulá-la e usufruir do que tem a oferecer.
Serguiêi é que se
revela o calculista-mor do enredo (sua amante sendo movida pela
passionalidade). Isso fica claro quando, após o assassinato do marido (e o
sumiço de seu corpo), aparece outro postulante à herança: “Boris Timofiêitch
negociava com um dinheiro que não era todo seu... ele tinha em circulação mais
dinheiro do seu sobrinho Fiódor Zakhárov Liámim, menor de idade, do que
propriamente seu”. O menino vem visitar a “tia” e lemos o seguinte diálogo
entre os amantes:
“– Agora, Catierina
Ilvovna, todo o nosso negócio vai virar pó.
– Por que virar pó?
– Porque agora tudo isso vai ser dividido. O que
é vamos administrar, um negócio vazio?
– Ora essa,
Seriója, será que estás achando pouco?
– Mas o problema não é comigo; eu só duvido que
agora a gente vá ter aquela felicidade.
– Como assim? Por
que nós não vamos ter aquela felicidade, Seriója?
– Porque, pelo amor
que tenho pela senhora, Catierina Ilvovna, eu desejaria vê-la uma verdadeira
dama e não vivendo do jeito que a senhora tem vivido até agora. Ao contrário,
com a diminuição do capital nós ainda vamos acabar vivendo pior do que antes.
– E por que eu iria
precisar disso, Seriójotchka?
– É verdade,
Catierina Ilvovna, pode ser que a senhora não tenha nenhum interesse nisso, só
que para mim, que a estimo — e mais uma vez contrariando o olhar das pessoas,
que são infames e invejosas — isso será terrivelmente doloroso. A senhora faça
como achar conveniente, é claro, mas eu tenho pra mim que essas circunstâncias
nunca vão me fazer feliz.”
Por tais vias
insidiosas, ele a instiga, espicaça a eliminar o pequeno Fiódor (numa outra
cena extraordinária). Vai ser a desgraça do casal criminoso. Serão pegos em
flagrante, julgados e condenados à Sibéria, aos trabalhos forçados, o que
levará Lady Macbeth do distrito de
Mtzensk a outro patamar, narrativo e psicológico. Poucas páginas finais são
tão intensas e cruéis (e tão econômicas em seus efeitos): inverte-se a dinâmica
do casal (ou melhor, ela se explicita tal como é, de fato) e vemos toda a
impetuosidade e bovarismo de Catierina Lvovna (o Ilvovna que lhe dirige
Serguiêi é marca do inculto, como nos esclarece o tradutor) degradar-se (em
paralelo à sua degradação social) numa sofrida paixão de sujeição e humilhação.
Haverá ainda um último ato em que ela reencontrará o seu “gênio” (lembram?, aquele
que despertara graças à ligação com o empregado e a decisão de eliminar o
sogro) e tomará mais uma atitude extrema e irresignada: um lado Medeia bem mais
forte do que o lado Lady Macbeth inscrito nesse temperamento. Uma Medeia que
teve de se confinar a um meio flaubertiano, onde o corriqueiro é atroz.
Assim, a tragédia
elizabetana, a vida em ramerrão (seja nos moldes balzaquianos ou nos moldes
flaubertianos) e a dimensão em que suas monstruosidades podem ser filtradas —
como “exemplo”— num mundo pós-Revolução Industrial (a página policial, que
galvaniza as atenções da sociedade) se unem em dois textos perfeitos que têm de
constar em qualquer lista sensata das maiores obras de ficção do século XIX.
Notas:
1 Todas as
citações de Keller se referem à versão de Marcus Vinicius Mazzari (ed. 34,
2013; edição que inclui as ilustrações feitas por Karl Walser, irmão do genial
Robert Walser, autor de Jacob von Gunten; há também um pequeno texto deste
último, antes do posfácio do tradutor) para Romeo
und Julia auf dem Dorfe. Não foi a primeira vez que o texto foi traduzido: ele pode
ser encontrada também em Três Novelas
Alemãs, em versão de Otto Schneider & Germano Thomsen (Ediouro, 1988;
antes, pela Boa Leitura, 1964).
² Como exemplo, este trecho:
“Foram até a porta da cozinha, que fixara aberta e dava
diretamente para o quintal, e tiveram de
rir quando se olharam no rosto. Pois a face direita de Vrenchen e a esquerda de
Sali, que durante o sono estiveram encostadas uma na outra, exibiam agora, por
causa da pressão, um vermelho carregado, enquanto a palidez das outras faces se
acentuava ainda mais com a aragem fria da madrugada. Esfregaram carinhosamente
o lado frio e pálido de seus rostos para dar-lhes também a coloração vermelha.
O frescor da manhã, a paz calma e orvalhada que se estendia por toda a região,
o recente alvorecer, tudo isso os deixava felizes e esquecidos de si mesmos, e
sobretudo Vrenchen parecia dominada por um espírito ameno de despreocupação
– Amanhã à noite, portanto, eu preciso sair desta casa — disse
ela — e procurar um outro teto. Antes disso, porém, gostaria de me divertir
bastante com você, uma única vez, apenas uma vez; gostaria de dançar com você
em algum lugar, apaixonada e intensamente, pois a dança com que sonhei se
apossou de todo o meu ser!
– De todo modo quero ficar ao seu lado e ver onde você vai
se abrigar—falou Sali —; e também adoraria dançar com você, menina adorável,
mas onde?
– Amanhã haverá quermesse em dois lugarejos não muito
distantes daqui — replicou Vrenchen.— Nesses lugares as pessoas nos conhecem
pouco e mal irão reparar em nós...”
3 Também causa espécie ele não fazer referência
em nenhum momento (nem sequer na bibliografia) à tradução anterior.
4 Uso em todas as citações de Leskov a tradução
de Paulo Bezerra (salvo engano, a primeira no Brasil), publicada pela ed. 34
(2009), na sua Coleção Leste, à qual foram acrescentados dois outros títulos do
mesmo autor posteriormente: Homens
interessantes e outras histórias e A
fraude e outras histórias. O título original é Ledi
Makbet Mtzenskogo uezda.
5 Utilizo a tradução de Manuel Bandeira para Macbeth, ATO I, cena VII (ed. José
Olympio, Coleção Rubáiyát, 1961).
6 Atmosfera descrita com grande eficácia por
Leskov: “O luar penetrava pelas folhas e flores da macieira,
desfazendo-se em réstias minúsculas, claras e as mais caprichosas, pelo rosto e
por toda a figura de Catierina Lvovna, deitada de costas; o silêncio imperava
no ar; só uma brisinha leve e morna mexia um pouquinho as folhas sonolentas e
espalhava o perfume delicado das relvas e árvores floridas. Respirava-se algo
languescente, que dispunha para a indolência, a volúpia, os desejos obscuros”.
Comentários