Em “Fazenda Modelo” ele deu nome aos bois
Por Dirceu Alves Jr
“De cada três músicas que faço, duas são censuradas. De tanto
ser censurado, está ocorrendo comigo um processo inquietante. Eu estou começando
a me autocensurar. E isso é péssimo.” Em desabafo publicado na imprensa no
início dos anos 70, Chico Buarque assumiu que não estava tão imune ao objetivo
da ditadura militar – o de calar ou, pelo menos, inibir a criatividade do
artista. Depois de 14 meses de exílio na Itália, entre 1969 e 1970, o
compositor reencontrou o Brasil no auge da repressão com o governo de Emílio
Garrastazu Médice (1969-1974). O veto ao samba “Apesar de você” inaugurou uma
sequência aparentemente infindável e, mesmo que o álbum seguinte, Construção (1971), tenha saído sob a condição
de que Chico alterasse alguns versos, o compositor sentiu a necessidade de ares
menos viciados para respirar. Procurou driblar a birra dos homens de farda no
teatro, criando ao lado do cineasta Ruy Guerra o musical Calabar – o elogio da traição.
Às vésperas da estreia, em novembro de 1973, os censores voltaram atrás da liberação,
e a produção foi abortada, deixando mais de 60 pessoas desempregadas.
Depois de gravar Chico
canta (1973), com a trilha sonora feita para Calabar, o compositor ausentou-se dos estúdios e dos palcos. Rompeu
contratos musicais para, durante nove meses, mergulhar em outra forma de expressão,
até então inédita em sua trajetória: a literatura. Na biografia para a coleção Perfis do Rio, escrita pela jornalista
Regina Zappa em 1999, Chico confessa que não sabe exatamente onde surgem as
ideias que começam a pavimentar um livro. No caso de Fazendo Modelo, novela pecuária, a obra inaugural dessa verve de
romancista, publicada em 1974, ele, no fundo, sabia. “Eu escrevi não por uma
necessidade literária, mas política”, assumiu posteriormente.
Chico Buarque ao lado de Gilberto Gil durante a Passeata dos Cem Mil. Foto: David Drew Zingg |
O prefácio já evidencia as ironias dali em diante: “O autor não
é, como poderia parecer aos menos avisados, um pecuarista tradicional, nem um
zootecnista, nem sequer um executivo ou proprietário de empresa dado a
pesquisas e reflexões. Trata-se de um estudioso, descendente de uma família
cujos membros granjearam o merecido prestígio no meio intelectual da Fazenda
Modelo”. Na figura desse prefaciador fictício, Chico Buarque deixava claro que
sua Fazenda Modelo era o microcosmo
do Brasil naquele momento. O livro mostra uma sociedade forma exclusivamente
por quadrúpedes, no caso bois e vacas. A dominação sobre o rebanho é representada
ela figura de um líder, Juvenal, o Bom. Comunidade bovina em fase de
crescimento, a Fazenda Modelo percebe ecos de desenvolvimento, obrigando-se a
eliminar tudo o que era natural e poderia colocar em risco esse progresso. A submissão
imposta ao gado atinge desde restrições alimentares até limitar as atividades
sexuais à procriação, criando um banco de espermas.
Figura-chave dessa proposta de Juvenal, o Bom é o touro Abá. Até
então sempre visto copulando diante de todos, ao ar livre, com as mais diversas
parceiras, ele é promovido à figura de grande reprodutor e peça-chave do
projeto desenvolvimentista. A paisagem de um território livre e habitado por um
gado sexualmente livre começa a ficar para trás. O que era prazer vira obrigação,
dever. E, depois de saciar o desejo de uma vaca, Abá tinha outra à espera. Logo
em seguida, uma terceira e mais outra e a fila não acaba. A qualidade de seus
espermatozoides orgulha a Fazenda Modelo e, em decorrência da intensa
atividade, sua energia começa a escassear. Mesmo diante da queda do apetite
sexual, o touro garanhão não ganha trégua. Os exploradores coletam seu sêmen de
formas artificiais e, já pensando em aposentar o reprodutor-mor, investem em
uma de suas crias, Lubino, embutindo em sua cabeça a honra de suceder o pai na missão
tão gloriosa.
Chico uso o universo pecuário para esmiuçar questões do país
que completava uma década sob os efeitos do golpe de 1964. O chamado milagre econômico,
então no auge, possibilitava aos brasileiros sonhar com bens de consumo, casa própria
e a ideia de que aqui era realmente “o país do futuro”. Assim como o ego
inflado de Abá, que esbanjando virilidade submetia-se a mais e mais ejaculações,
o povo brasileiro pensava que, naquela trilha, um dia estaria entre os grandes.
“Achou ruim? Nem adianta fazer barulho que é pior!” Assim Juvenal repreendia o
gado enfastiado de tanto dar e pouco receber. Em uma analogia ao brasileiro, já
cansado de lutar por ideias e sofrer decepções, o rebanho é dominado pela
tristeza e insatisfação. E povo desanimado não produz, ameaçando o sistema se
este não encontrar uma forma de se readaptar em nome da permanência no poder.
Duas primeiras edições de Fazenda Modelo |
Na época do lançamento de Fazenda Modelo, novela pecuária
foi associada ao livro A revolução dos
bichos (1945), do autor inglês George Orwell. Essa fábula apresenta um
grupo de animais que, livro do algoz, cria as próprias leis de convivência. Em uma
entrevista ao jornal Pasquim, Chico Buarque
desviou-se da polemica declarando que nem conhecida esse texto do célebre autor
de 1984. Para a ensaísta e doutora em
Literatura Regina Zilberman, a associação é inevitável, mas em momento algum um
problema. “Qualquer narrativa com pendor à fábula – e isso acontece desde a
Antiguidade – apresenta semelhanças entre si. A revolução dos bichos constitui uma crítica à revolução soviética e
ao tipo de exercício de poder entre os pretensamente iguais. Fazenda modelo critica outra revolução,
a econômica, calcada no exemplo da produtividade, instaurada pelo Estado
brasileiro à época da dominação dos militares e, sobretudo, dos planejadores de
plantão”, afirma Regina Zilberman.
Na tentativa de mostrar aos leitores que não existe mal
eterno, Chico Buarque termina sua novela decretando o fracasso do programa
imposto por Juvenal e a tentativa de visualizar outras formas de lucro. Depois da
posse do presidente Ernesto Geisel (1974-1979) e o início da chamada “distensão
lenta e gradual”, militares obrigaram-se a baixar minimamente a aguarda em nome
da garantia do poder por mais tempo. Premonitório ou alentador, Chico Buarque injeta
um pouco de otimismo aos leitores e em sua própria alma de artista. Encontra fôlego para voltar aos estúdios,
grava um disco de intérprete batizado de Sinal
fechado e retoma o teatro no musical Gota
d’Água.
Chico deixou Fazenda Modelo,
novela pecuária como um livro que
talvez não tenha sido plenamente valorizado. Diante dos novos tempos políticos
e talvez ciente da importância de fazer literatura por necessidade artística e não
apenas circunstancial, o autor voltaria às narrativas de maior fôlego apenas,
em 1991. Na esteira deste seu revival como escritor, Fazenda Modelo volta às prateleiras das livrarias como um clássico.
Desde 1992 foram publicadas 17 edições, totalizando cerca de 43 mil exemplares
vendidos.
Abaixo um breve catálogo com rascunhos de Fazenda Modelo
* Texto publicado inicialmente numa edição especial da extinta Revista Bravo! dedicada a Chico Buarque.
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