Dom Quixote visto por Thomas Mann
Por Cecília Dreymüller
Dom Quixote e Sancho Pança, por Damião Martins (detalhe) |
Travessia marítima com Dom Quixote é um
ensaio esplêndido, ou melhor dizendo, folhetim esplêndido, escrito de forma agradável
para as páginas literárias de um periódico de Zurique, em que Thomas Mann comenta
suas impressões de leitura durante uma travessia pelo Atlântico. O texto possui
inclusive algumas tintas novelescas quando se dedica às passagens sobre viajante
escocês cuja conduta inapropriada – hospeda-se na primeira classe, mas desce a
fim de socializar-se com os passageiros da terceira – choca com o sentido estrito
de casta de Thomas Mann: “Alguém tem que saber a qual ambiente pertence”.
O que se
apresenta como comentário improvisado do Quixote, estruturado ao modo de um diário de
viagem, corresponde, não obstante – como descobriram os diários –, a um estudo
minucioso do clássico e suas possíveis fontes, para o qual o ilustre viajante
se documentou a fundo e consultou autoridades como o mitólogo Karl Kerényi.
Mais de um
ano e meio entre o início da leitura e o seu término o que pensou da amável ficção
lida foi trabalhada em dez dias. E em todo este tempo a ocupação com o Quixote influenciou direta e
indiretamente no romance que escrevia em 1934, a terceira parte de sua
tetralogia bíblica José e seus irmãos.
O resultado
de suas pesquisas foi incluído no último livro que Thomas Mann publicou na Alemanha
nazista, a compilação dos Ensaios sobre
música, teatro e literatura que contém verdadeiras joias ensaísticas e quando
já havia editado Travessia marítima com
Dom Quixote.
O marco
narrativo do trânsito pelo oceano até um novo continente, de todo modo, veio
muito a propósito para que o escritor alemão adentrasse na imensidão da obra cervantina. A
vida à bordo do luxuoso transatlântico forma um cenário em contraste para sua aproximação
brilhante e pessoal ao Quixote.
Thomas Mann ainda
terá acrescido em cinquenta páginas a mais a riqueza do livro que tantos outros
volumes monográficos não alcançaram com tanta precisão. É singular nesse
sentido, por exemplo, a forma como compreende o Quixote como signo de nação que eleva a paródia melancólica e ridiculariza
suas qualidades clássicas como a grandeza, o idealismo, a má generosidade.
O interesse
especial do escritor é penetrar no trabalho de Cervantes, descobrir seus truques,
explicar seus procedimentos nos quais encontra certo paralelismo com seu
próprio exercício escritural. “Sua admiração pela criatura de sua própria imaginação
cômica cresce constantemente ao longo da narração – este processo é talvez o
mais fascinante de todo o romance, de fato, é inclusive um romance em si, e
coincide com a crescente admiração ante a própria obra que estava concebida
modestamente como robusta piada satírica, sem ideia do grau simbólico-humano
que estava destinada a alcançar a figura do herói”.
Thomas Mann se
pergunta pela legitimidade dos “brutais enganos” narrativos, desde um conceito
literário mais rígido que é o de Cervantes; sublinha, com esquisita sensibilidade
linguística, a dúvida dos românticos com La Mancha; e se encanta com o humor no
gênero épico.
Da
curiosidade profissional passa ao assombro e à admiração pela capacidade como a
obra foi recebida no contexto de sua publicação e a se manteve ao longo do
tempo como uma peça cada vez mais integrada ao universo literário.
Por fim,
Mann acaba compondo mais que uma leitura sobre o livro de Cervantes, mas
aprofunda sua tarefa humana e reaviva, assim, algumas tintas do curioso e
monumental retrato de um dos maiores gênios de sempre.
* Este texto é uma tradução livre para "Retrato teutón de Cervantes". A tradução de trechos do livro é a partir do original em espanhol.
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