Copa do Mundo de Literatura
Sim, o futebol, tema que vimos perscrutando em alguns nomes
da literatura nacional e estrangeira num conjunto de compilações que tem
circulado por aqui quase que diariamente nesse período de Mundial, pode ser um
elemento e tanto para falar sobre literatura! Publicação do caderno “Galeria” do
jornal A Tribuna, de Santos, nosso
colunista Alfredo Monte trouxe a magnífica ideia de uma listinha básica com
dicas literárias de países que estão na Copa do Mundo. Ao invés de um embate para no final sair um ganhador, todos os citados são ganhadores e merecem, certamente a atenção dos leitores.
“Infelizmente, não é possível estabelecer uma relação de
igualdade entre as produções literárias dos países participantes da Copa por
uma razão muito simples: a lacuna nas traduções. Nenhum escritor de Camarões
(Grupo A), da Costa do Marfim (C), sequer da Costa Rica (D), ou do Equador e
Honduras (o que desfalca muito o grupo E), e olhe que são países do nosso
continente, falantes de uma língua-irmã” – esclarece Alfredo sobre a lista ora
apresentada. “E por que será que nunca pude ler nenhum autor contemporâneo do
Irã (F), em versão brasileira, fato inexplicável: países em ebulição social e
política invariavelmente apresentam vigor literário (caso, também, da Bósnia).
No G, estou em falta com Gana; no H, com a Coréia do Sul (no entanto, é bom
lembrar que um dos favoritos ao Nobel nos últimos anos é o poeta Ko Un). Ao
todo, nove países que entram em campo em total desvantagem. Chamando a atenção
para esse grave e lastimável fato, abaixo vai uma dica literária (com o perdão
dos comentários forçosamente genéricos) dos demais países:
GRUPO A
Salim Miguel |
Brasil – Um dos nossos grandes veteranos da ficção, Salim
Miguel, comemora 90 anos em 2014. Ele voltou a produzir romances em 1984, as
manifestações pelas “Diretas Já” parecem ter desentravado A Voz Submersa (Record), que aproveitou um dos crimes da época da
ditadura como gancho e tornou-se o primeiro título de sua prolífica fase madura
(a escolha de alguém nascido no Líbano também tem a ver com a vocação do nosso
país de receber imigrantes, tão malbaratada às vezes);
México – Este é o ano do centenário do múltiplo Octavio Paz.
O leitor brasileiro pode apreciar a nova edição (Cosac Naify) de uma das obras
principais do Nobel 1990: O Labirinto Da
Solidão (1950), reflexão fundamental que está para o seu país como Casa grande e senzala para o nosso;
Croácia – Na complicada geopolítica da ex-Iugoslávia, o
croata Ivo Andrić, Nobel 1961 (também escreveu em sérvio), se destaca. Uma boa
amostra da sua arte de contar histórias, oferecendo uma paisagem humana
labiríntica, com o conflito étnico sempre aflorando, é a coletânea Café Titanic (Globo).
GRUPO B
Alejandro Zambra |
Holanda – Um romance de grande transparência, nem por isso
deixando de ser crítico e inteligente (é como se juntasse Deus da carnificina com Precisamos
falar sobre Kevin), e que vem fazendo um inesperado sucesso, é O Jantar (Intrínseca), de Herman Koch,
cuja narrativa acompanha justamente as etapas de um encontro social entre
irmãos (o aperitivo, a entrada, o prato principal, a sobremesa) num restaurante
de reservas disputadíssimas para mostrar a melindrosa questão da
responsabilidade ética sobre a próxima geração;
Chile – Um dos melhores livros do século até agora, Formas De Voltar Para Casa (Cosac Naify)
mostra que Alejandro Zambra atingiu a maturidade na sua arte: se nos livros
anteriores, ele descambava, apesar da qualidade do texto, para uma cansativa
metalinguagem, aqui ele apresenta contrastes entre a geração dos seus pais e a
sua de uma forma magistral, fazendo a discussão política penetrar nos meandros
mais inesperados, até nos terremotos que comumente abalam a nação chilena;
Austrália – O país continental tem seu Nobel (Patrick White,
em 1973, contudo esse genial romancista mal foi traduzido por aqui). Em
compensação, Colleen McCullough ficou famosa como Best-seller, boa parte da
crítica torce o nariz para ela. Nem por isso é menos verdade que Pássaros feridos (1977) é poderoso (até
nos aspectos folhetinescos) ou que sua série Senhores de Roma seja notável. O romance que a inicia (em 1990), Primeiro Homem de Roma (Bertrand), é um
dos melhores romances históricos já escritos;
Espanha – Um dos escritores marcantes da atualidade é Javier
Cercas, cujos livros são mesclas fascinantes de reconstituições
histórico-jornalísticas e de reflexão sobre sua elaboração narrativa. São
livros “fronteiriços”, e uma boa síntese desse movimento pendular é As Leis Da Fronteira (Biblioteca Azul),
que mistura a passagem da adolescência para o mundo adulto com o período de
transição do franquismo para a democracia;
GRUPO C
Alvaro Mutis |
Colômbia – país que perdeu em curto intervalo de tempo seus
dois maiores escritores. Um já é sobejamente reconhecido (García Márquez); o
outro, merecia mais notoriedade: Alvaro Mutis. Que tal começar com o
maravilhoso A Neve Do Almirante (Record),
de 1986, no qual, como já se disse, o protagonista (um marinheiro) “viaja pela
paisagem humana”?;
Japão – Uma autora atual talentosa, num país de riquíssima
literatura, é Hiromi Kawakami. Um exemplo é Quinquilharias
Nakano (Estação Liberdade), de 2005, onde vemos claramente que as relações
de trabalho muitas vezes impõe a trajetória dos nossos afetos, criando
ligações, lealdades e pequenas intrigas, pois formam o horizonte da maior parte
das vidas humanas;
Grécia – O leitor brasileiro agora tem a sorte de ter as obras do fantástico
Nikos Kazantzakis traduzidas diretamente do idioma original (pela editora
Grua): assim, além da nova versão do livro que o tornou mundialmente conhecido,
Vida e proezas de Alexis Zorba, posso
recomendar enfaticamente o monumental Capitão
Miháelis, com sua Creta sob a opressão turca;
Itália – Candidato eterno ao Nobel, Claudio Magris é outro
caso de escritor plural e quase inclassificável. Um de seus títulos mais lindos
é Alfabetos (traduzido pela editora
da UFPR), de 2008, em que ele mistura crítica literária, ensaística e
memorialismo, ressaltando sua formação de leitor. E que leitor! Vale por todos
os cursos de letras que se possa pensar;
Inglaterra – A pátria em que melhor floresceu a ficção
policial tem uma genial representante neste século XXI: Kate Atkinson, com sua
série em que Jackson Brodie, relutante detetive particular enfrenta tramas
intrincadas que brincam com o destino e a tragédia. A Fundamento lançou
recentemente o perturbador Saí Cedo,
Levei Meu Cachorro (2010), quarta aventura de Brodie;
Uruguai – Além de ser um gênio da literatura (é o Samuel
Beckett latino-americano), Juan Carlos Onetti tem uma de suas obras-primas
chegando ao meio-século este ano: Junta-Cadáveres
(Planeta) — ótima, embora desassossegante introdução ao anti-universo
recorrente de Santa María e seu principal personagem, Larsen (que aparece em
vários outros textos);
GRUPO E
Jean Paul-Sartre |
Suíça – Que escritor pode melhor representar a estranha
nação que junta a ideia de civilização com uma espécie de cinismo
institucionalizado do que Friedrich Dürrenmatt, com suas peças e narrativas
cujo eixo sempre perfaz uma parábola jurídica implacável ? Exemplo: O Juiz E Seu Carrasco (L&PM), de
1950, um jogo de gato e rato entre policiais e um poderoso criminoso. No final
saímos com a impressão de que todos são culpados;
França – Há 50 anos, Sartre ganhava (e recusava) o Nobel. Em
2014, a L&PM lança a derradeira, inacabada e avassaladora obra do último dos
mestres franceses do pensamento, da literatura e da vida: O Idiota Da Família (1972), estudo sobre Flaubert que, no fundo, é
a tentativa monstruosa de compreender (e explicar) até o último limite do
conhecimento a vida de um indivíduo;
GRUPO F
Chinua Achebe |
Argentina – Dois dos maiores escritores argentinos têm seu
centenário comemorado em 2014: Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares. No ano
passado, um dos títulos cortazarianos centrais, O Jogo Da Amarelinha ganhou nova edição (Civilização Brasileira),
comemorativa do seu cinquentenário, e a Cosac Naify vem lançando títulos do
parceiro de Borges, como suas requintadas e ambíguas histórias de amor e
amizade conspiratórios: Histórias
Fantásticas. Ambos são autores para se levar para a proverbial ilha
deserta;
Nigéria – Precisávamos de mais títulos traduzidos do Nobel
(1986) Wole Soyinka (há O leão e a joia,
bela peça teatral). Mas pelo menos agora já temos traduções dos geniais
romances de Chinua Achebe, como O Mundo
Se Despedaça (Companhia das Letras), de 1958, com sua caracterização
estupenda do conflito de gerações, mentalidades, etnias, que descortinam os
trágicos processos históricos que assolaram muitos dos países do continente
africano;
GRUPO G
Agustina Bessa-Luís |
Alemanha – Quando se lê Pontos
De Vista De Um Palhaço (Estação Liberdade), de 1963, a impressão é de que
Heinrich Böll (Nobel 1972) é um escritor de agora, um jovem que poderia estar
participando de manifestações, tal a garra, a verve, a raiva, a energia e a
atualidade da narrativa. O protagonista, palhaço de profissão, se desavém com
todos à sua volta, mas não com o leitor. Uma obra-prima;
Estados Unidos – Este ano temos o centenário do grande
escritor negro Ralph Ellison, e sua maior obra, um romance que mostra a
condição da raça negra na sociedade norte-americana de forma definitiva, e
ainda assim, é um livro fortemente experimental, livre de amarras, ganhou nova
edição brasileira pela José Olympio: O
Homem Invisível, de 1952.
Portugal – A atual safra de escritores portugueses talvez
seja a mais pujante do cenário atual. Ainda assim, reservo este espaço para
comemorar os 50 anos de um dos maiores livros da originalíssima Agustina
Bessa-Luís, autora que não se parece com nenhum outro escritor, sempre criando
mundos históricos muito particulares: Os
Quatro Rios, primeiro volume da trilogia “As relações humanas”;
GRUPO H
Albert Camus |
Argélia – Será impertinência destacar um autor que nasceu no
país, mas oriundo dos povos colonizadores? Como, contudo, em 2013 tivemos o
centenário de Albert Camus, não custa insistir que o Nobel 1957 escreveu alguns
dos livros essenciais do século passado. A Hedra acaba de publicar seus
preciosíssimos Cadernos em três
volumes: “Esperança do Mundo” (1935-37), “A desmedida na medida” (1937-39), “A
guerra começou, onde está a guerra?” (1939-42), que antecedem sua vida de celebridade;
Bélgica – Como deixar de destacar um dos escritores que
melhor aclimataram tramas mitológicas numa prosa moderna (e muito marcada pela
psicanálise, mas sem ser subserviente a ela): Henry Bauchau, autor de Édipo Na Estrada (Lacerda)? É um on the road no inconsciente;
Rússia – Quando será que vão esquecer de Alejander Soljenítsin (Nobel 1970)
como dissidente, o homem que denunciou os gulags soviéticos, e começar a
valorizar sua obra literária, seu fôlego como romancista (Agosto 1914 é um grande momento do gênero) e o fato de ter escrito
uma das novelas mais perfeitas de todos os tempos, Um Dia Na Vida De Ivan Denissovitch (Siciliano)?
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