Casa das máquinas, de Alexandre Guarnieri
por Pedro Fernandes
Se esta fosse uma fala que tivesse oportuno interesse em
servir de matéria para outro tipo de escrita que não esta do blog – texto que
sempre tomo cuidado de não chamar de resenha dado as limitações de tempo e
espaço numa apreciação mais profunda das leituras – bem poderia suar mais para escrever
uma leitura que valha para a dimensão de Casa
das máquinas, livro do poeta Alexandre Guarnieri publicado em 2011. Poderá
ser ledo engano, mas é este um conjunto de poemas escritos pela letra da
maturidade e com o cuidado e o zelo com a palavra a modo do que fizeram os
nomes da poesia concreta e toda a tradição brasileira da objetividade verbal.
Alexandre Guarnieri se mostra ser, ao menos com este título, o de uma nova gênese vocal na poesia brasileira, herdeiro nato da
casa de onde vieram nomes como João Cabral de Melo Neto, os irmãos Haroldo e Augusto
de Campos, Ferreira Gullar (nos tempos em que foi um grande poeta), entre outros; nomes com os quais ele constrói um
extenso diálogo intertextual se o leitor atentar para a forma com que são
introduzidos alguns poemas de Casa das
máquinas. Integração, portanto, revelada substancialmente no próprio fazer
poético, num gesto claro do poeta contemporâneo que não necessita de ter seus
pares apenas como subterfúgio, baliza atrás da qual se esconde. Poeta, portanto,
que tem ciência de que ser poeta é estar em diálogo com os pares, os da tradição
– que eles são rotas impossíveis de fuga.
Mas, Casa das máquinas
não necessita de leitores; necessita, isto sim, de operários. É evidente que ao
dizer isso estou pensando no típico leitor que tem se aperfeiçoado contemporaneamente
com o boom diário de informações e
afeito apenas a leitura breve, sem muito esforço, isto é, aquele tipo dado a preguiça
de exploração tátil das veias do papel impresso; estou pensando também naquele tipo que se
entusiasma fácil com o desconcerto da frase ou com um titubeio de palavras –
regra, ao que parece, a mais viável e a mais comum para a integração de um
poeta no gosto popular. Não fosse isso e os nomes feitos pelos grandes
conglomerados editorias não eram tão insossos enquanto a verdadeira poesia
ainda está nos regatinhos à margem da perfeição tingida.
“O texto é uma máquina preguiçosa que requer do leitor um
árduo trabalho cooperativo para preencher espaços do não-dito ou do já-dito,
espaços, por assim dizer, deixados em branco” – esta é uma citação de Umberto
Eco que coloquei como epígrafe para um texto que escrevi para servir às orelhas
do livro do poeta Gustavo Luz Das máquinas ou as qualidades do papel em nossa vida, título, aliás, para o
qual logo remeti quando me encontrei diante do texto de Guarnieri.
Coincidentemente os dois não apenas se prestam ao lugar de máquina preguiçosa –
e afinal todo texto é isto – mas deixam à superfície a necessidade do instrumento
vocal trazido pelo leitor para que despertem enquanto textualidade.
O texto do poeta Gustavo Luz tem uma proximidade muito
grande e engrandecedora com a sua própria vivência e tradição do impresso; o do
poeta Alexandre Guarnieri não deixa passar outra vivência se não a que vem pelo
ato da leitura, embora a referência ao impresso não deixe de existir se formos
lembrar aqui de poemas como “tipografia”, “1/uma máquina datilográfica”. Mas, a estrutura
orgânica do poema em bloco, como se caixa de concreto armado – olhem a
influência do Concretismo – em muito se assemelha. Casa das máquinas se organiza em “interruptor”, um introdutório como
se uma alavanca de acesso aos compartimentos seguintes, “mecanophrenya”, “alameda
da indústria” “Urbit et Orbitron” e “a anima da máquina [...]”. Tomados os
blocos juntos, parece haver uma exposição equilibrada e elegante de um único
poema.
Alexandre Guarnieri prima pelo exercício da linguagem (vê os títulos das partes desse livro); a coloca
entre a objetividade como se fosse possível provar de sua natureza tátil e
entre a falha, atingida por uma intervenção de uma natureza tão racional capaz
de ser tornada até código numérico; estou pensando em textos como o que nomeia a edição
“c4s4 d4s má9uin4s”, cuja letra assume-se número numa transformação aproximada
pela coincidência gráfica da representação escrita. Ao falar usando o termo representação penso que toda a poesia desse livro do poeta carioca tomado por um forte descritivismo busca instrumentalizar o olho para o detalhe, esse lugar que tem sido força propulsora de toda poesia.
Mas, voltando ao paralelo e para fechá-lo entre Casa das Máquinas e Das máquinas: enquanto em Gustavo
Luz a lida com a máquina ainda tem o tom idílico das primeiras formas de produção
do impresso e por isso o tom belamente construído de um artesanato da linguagem,
em Guarnieri tudo é força; é a racionalidade da grande indústria e sua
infinidade de apetrechos. Mesmo o tom idílico aí presente é abafado por um
ruído ensurdecedor que acompanha os ouvidos do leitor imaginativo, capaz de ouvir
por entre as palavras esse rumorejo do industrial. Tome para o caso o poema “rouparia”
que o poeta dedica à mãe; antes, duas notas – os destacados e as intervenções em negrito
nos colchetes são coisas minhas e fiz a transcrição da quebra de verso pelas
tradicionais barras, mas o poeta organiza seus poemas como se uma prosa
contínua quebrada apenas pela formatação justificada como uma caixa:
“não é agulha autônoma que costura, o pesponto / pronto, que guia a quilha regulando o recorte,/ os nós sob controle, as curvas seguindo o molde; /
não é uma agulha anônima que cria roupa ou fia / colcha, garajau, constrói rápido o vestuário ao / toque
do overloque, farda forte de
soldado, ou / pobre uniforme de empregado, frágil, de tecido/ mole; é rápida a
agulha e não vacila nunca porque há ali (abaixo na hierarquia da franquia) [vejam o movimento] / sua máquina, que não a ignora, que range deci- / béis em
excesso; agulha que é aço e não erra / porque há lá (acima na hierarquia da
vida) a / mão hábil e calada que costura, o dia-a-dia / puxa pano, o pé no
pedal, no ritmo controlado / o trilho que se equilibra na dura rotina da /
rouparia; vence, não cede; treme e não perde
/ a peça; avança apesar do cansaço, tece; sente / o péssimo exemplo sempre,
lamente o escasso / salário necessário, o abuso dos trabalhos; a / força das
costureiras, abelhas trabalhadeiras, [ouçam
o zumbido] é / força de pelotão lento, exército sem sargentos: / são senhoras,
estes tristes aríetes em riste.”
O recorte deste poema aqui foi proposital. Chamo, a partir dele
a atenção do leitor para outra qualidade positiva desse Casa das máquinas; a linguagem, esse material na e pela qual todos
se movem e que é elemento problematizado por toda grande literatura, e a forma estão
conscientemente equilibrados pelo tom de integração de um tema social
relevante. Veja o movimento de classes que o poema “rouparia” constrói aos
olhos do leitor! Devo dizer que integração linguagem-forma-realidade é indispensável
ao texto literário; não apenas ao texto em prosa, mas também no texto poético.
Não é caso de a literatura está submissa a esse tripé, mas é o caso de que todo
artefato por ela construído deságue aí. É esse encontro que reitera a própria
literatura como elemento da complexa engrenagem a que chamamos real, afinal é do
encontro do poeta com a realidade e sua complexidade que o instrumentaliza para
o trabalho de reordenação do mundo.
Por breve que seja, é a isto que se presta lugares de
escrita como este, espero, com estas notas ter sublinhado o grau de importância
que assume esse livro de Alexandre Guarnieri. Se o desafio de todo poeta é de
elaborar uma linguagem poética que expresse a complexidade da própria linguagem
e da realidade, fazer com as duas uma universalidade, o poeta começou bem. Está
com ele o desafio de alargar as possibilidades colocadas em processo com esta
obra.
Para não desculpa dos leitores de que não teve acesso a obra, há uma versão de Casa das máquinas para web aqui.
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