Cão como nós, de Manuel Alegre

Por Pedro Belo Clara



Na edição quinzenal desta coluna apresenta-se uma das obras que, sem margem para dúvida, mais vendas alcançou no historial recente do autor em causa. De facto, a conquista da vigésima quinta edição em pouco mais de dez anos após o seu lançamento, traduzindo-se num volume de vendas superior a cem mil exemplares (tendo em conta as limitações do mercado português, os números são bastante satisfatórios), comprova a evidência: o presente trabalho assume-se como uma das obras mais bem sucedidas deste famigerado autor.

Nascido em Águeda, no ano de 1936, Manuel Alegre é uma personalidade multifacetada da sociedade portuguesa. Destacado desportista durante a sua juventude, alcançou o honroso título de campeão nacional de natação. No entanto, o seu incessante combate contra as ditatoriais premissas do regime fascista que no país então imperava contribuiu, e muito, para o início da vida política do autor. Em 1963 foi preso pela polícia do estado (PIDE). No ano seguinte exilou-se em Paris, França, e posteriormente em Argel (Argélia), de onde emitiu as suas famosas locuções radiofónicas em A voz da liberdade. Após a revolução de Abril, foi deputado na Assembleia Constituinte – cargo que ocupou por mais de trinta anos. Actualmente é um destacado membro do Partido Socialista, mas o seu percurso, pleno de espinhos que só se suportaram em nome das rosas que prometiam, denuncia o carácter de um homem que nunca deixou de lutar por uma nação mais fraterna e justa. Em 2006 e 2011 concorreu à Presidência da República Portuguesa, intenção essa que, no primeiro caso, chegou a merecer o rasgado louvor do músico brasileiro Gilberto Gil, que à data desempenhava as funções de ministro da Cultura no governo de Lula da Silva. No entanto, os resultados de ambos os sufrágios nunca foram suficientes para que viesse a ocupar o cargo ao qual se candidatara.

Paralelamente à sua faceta política, Alegre cedo se afirmou um poeta de distinto recorte (o seu trabalho poético merecerá, de nossa parte, uma futura intervenção). Em 1965 lança o seu primeiro trabalho, Praça da Canção, que devido ao alto teor interventivo que o pauta de pronto é suprimido pela censura então vigente. Desde esse momento, passados quase quarenta anos de criação literária, a sua obra entende-se pelos domínios da poesia, da crónica, do ensaio, do romance e da novela. Cão como nós é precisamente um dos filhos desse género desenvolvido por Alegre, o último a ser descrito na anterior enumeração.



Provavelmente, um dos motivos que sustenta a grande aceitação dos leitores em torno deste trabalho prende-se com o facto de o mesmo relatar uma história verídica, algo que sempre acrescenta um cariz singular ou um lustroso traçado ao natural discorrer do relato em causa. Afinal, o romance fictício comporta elementos fantasiosos, por mais verosímil que seja a sua génese. Sob o seu efeito, acresce a ilusão. Factos verídicos, por sua vez, traduzem tendencialmente a existência como ela é, com seus altos e baixos, com suas luzes e sombras. A identificação do leitor com uma obra  assim é, por isso, se as probabilidades não falharem, maior.

Esta história tem como protagonista Kurika, um antigo cão da família Alegre. O seu nome, compreensivelmente estranho, deveu-o à personagem de Henrique Galvão, um bravo leão que em 1944 foi apresentado no livro com o mesmo nome. Ora, acontece que os filhos do autor à data exploravam as linhas dessa história, pelo que a nomeação do novo membro da família, um épagneul-breton de comportamento bastante peculiar, se tornou deveras óbvia.

Em suma, todo o livro, ao longo dos seus cinquenta e um capítulos, descreve a passagem e o convívio do referido cão com a restante família, as acentuadas singularidades do seu carácter e o impacto que a presença canina teve em cada um dos membros, desde a chegada («veio antes de a minha filha nascer») até ao comovente instante que marca a sempre inevitável despedida («A minha mulher chorava e eu até um beijo dei ao cão. Respirava cada vez com maior dificuldade. Mas de certo modo estava em paz. Já não resistia. Estava a entregar-se. Eu acho que a nós, mais do que à morte»). A esta linha natural de tempo acrescem as demais peripécias que condimentam a existência. No caso: as caçadas, as pescarias, as férias na praia. Mas de igual modo a reacção a momentos inevitáveis, como a morte do pai do autor, nos quais sobressaem características de vincado teor humano: «Ficou assim muito tempo e eu acho que ele estava a chorar comigo».

Um dos aspectos mais interessantes é, muito claramente, a forma como os membros da família (o autor, sua esposa e os três filhos) interagem com Kurika e este, por sua vez, retribui o tratamento. Nesta teia de relacionamentos que Manuel Alegre explora muitíssimo bem, conferindo ao conto uma substância algo humanizada, destaca-se não só a subtil sabedoria expressada por sua filha como o rígido distanciamento do próprio autor («cão é cão»), que termina numa tocante cumplicidade edificada sobre a merecida homenagem que este livro, no fundo, é. Quem já privou com animais entenderá: o amor que por eles se cultiva, e vice-versa, é uma flor que nenhum Inverno conseguirá despir. De forma por vezes pungente, tal premissa encontra nesta novela uma sóbria manifestação.

No derradeiro capítulo, Alegre partilha o poema que numa viagem de carro até ao Alentejo, por lúdicos motivos de caça, começou a despontar em si, e onde se comprova a solidez dos sentimentos entre ambos. Fora escrito em moldes de epitáfio no mês da morte de Kurika (Fevereiro de 2002), um cão que, de tão humano, tinha a sua maior frustração na inabilidade para a fala.

Como nós eras altivo
fiel mas como nós
desobediente.
Gostavas de estar connosco a sós
mas não cativo
e sempre presente-ausente
como nós.
Cão que não querias
ser cão
e não lambias
a mão
e não respondias
à voz.
Cão
Como nós.

A linguagem utilizada nesta trabalho é bastante simples e directa, assumindo-se mesmo, em diversas fases, coloquial. Mais um aspecto que, convenhamos, torna a obra apetecível e, como tal, bem sucedida em termos de aceitação junto dos leitores. Mas dela advém uma peculiaridade que na prosa de Alegre é apenas uma característica (bem) distinta: parágrafos muito curtos e de leitura fluida alternados com o relato da história em si e com as impressões que em estilo de confidência são pelo narrador registadas. Estas, acrescente-se, são escritas sempre “entre parêntesis” e geralmente ensaiam o tom para o próximo episódio a ser relatado, estando no entanto escritas em tempo presente (pós-relato) e impregnadas de referências a um Kurika vivo somente em espírito («Sei que andas por aí, oiço os teus passos em certas noites»).

Terá então o caríssimo leitor em suas mãos, caso se apronte a investir algum tempo na degustação da obra, o relato da vida de um cão bastante singular que, como irá compreender, por diversas alturas não se distancia dos comportamentos normalmente tidos como humanos. Muito justamente, Kurika foi um “cão como nós”. Mais do que isso, e porque o valor das coisas nada é quando comparado ao da essência, emerge do texto o vigor de um testemunho ímpar sobre a existência de um desses seres que tão efemeramente passam pela vida dos Homens, mas que jamais se despedem sem antes deixar impresso no coração de quem os acolhe a centelha de uma tenra luz chamada “amor”.

«(...) contrariamente ao que ele supunha, não eram precisas palavras para entendermos o essencial: que tudo é uma breve passagem e que não há outra eternidade senão a da solidão partilhada. Ou no amor, ou na camaradagem das grandes batalhas, ou no silêncio de uma sala entre um leitor e um cão».

***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).


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