Campeões
Por Ferreira Gullar
© Márcio Petini
|
Não sei quem terá escapado à atmosfera de alegria e pânico
em que o Rio mergulhou nestas últimas
semanas com os últimos jogos da Copa do Mundo. Sem saber como nem porque, vi-me
de repente de ouvido grudado ao rádio, submetido a uma tortura diabólica: era
como se cargas de eletricidade (ou o que fosse) me entrassem pelo ouvido numa
frequência poderosa e instável que ora me fazia suar frio ora estremecer de
expectativa e apreensão.
Vejo-me agora, de longe. Prometeu doméstico com um abutre a
me devorar pelo ouvido. Eu mesmo ligara o aparelho de tontura, eu mesmo cuidava
dele regulando cuidadosamente o volume e a clareza do som, e se qualquer coisa
interceptava a transmissão e de deixava livre por um segundo, tinha ímpetos de
arrebentar o rádio, porque eu queria ser torturado! Vivia o drama de quase 60
milhões de expectativa e apreensão. Vejo-me agora, de longe. Prometeu do
Brasil.
Confesso que há muitos anos o futebol deixara de me interessar.
A derrota de 1950 no Maracanã – que me atingiu com a mesma força na distante
São Luís do Maranhão – tornou-me um descrente do nosso futebol. Em 1954, ouviu
por acaso alguns jogos, e a Hungria confirmou meu pessimismo. Por isso segui,
entre aterrorizado e comovido, o desenrolar das partidas do selecionado
brasileiro neste campeonato de 58. A qualquer hora – pensava – uma França ou
uma Suécia dessas acaba com nossa alegria. E quanto mais perto chegávamos do
título máximo, maior era o medo da derrota. Mas quando me sentei para ouvir o
jogo de domingo, já não me permitia pensar assim; tinha a impressão de que, se
perdêssemos aquele jogo, haveria suicídios coletivos, o Palácio da Alvorada
daria um estalo e cairia em pedaços, o rio sumiria engolido pela Guanabara.
Querendo crer na vitória liguei o rádio e já a Suécia abria
a contagem! Esfriei. A tragédia esboçava...
É por isso que ainda não consegui acreditar mesmo que somos
os campeões do Mundo, que Vavá empatou e desempatou, que o garoto Pelé fez o
diabo com os louros suecos. Desculpe-me o Armando Nogueira se falo com tanta
intimidade dessa gente que é sua, do fabuloso Garrincha, que confirmou sua tese.
Enfim, que me perdoem os rapazes da
imprensa esportiva, os fãs desvairados do futebol, mais merecedores do que eu
dessa vitória espetacular: devemos também a eles um domingo de felicidade nacional
e a euforia com que todos acordaram esta semana para recomeçar a vida. A cidade
hoje vai parar para abraçar os seus heróis.
Viva o Brasil do Rei Pelé.
* Numa entrevista concedida no final do mês de dezembro de
2011 para a Newsletter do Museu do Futebol (edição nº 10/janeiro de
2012) Ferreira Gullar comenta sobre suas aproximações com o futebol: “Na
infância, jogava bola com os amigos, aquelas tradicionais peladas. Foi nessa
época que joguei ao lado do Canhoteiro. Éramos muito garotos, eu tinha 10 e ele
8 anos. Ali, mesmo com pouca idade, ele já dava todos os sinais de que seria um
grande craque. Aí, na adolescência, cheguei a atuar como centroavante do time
juvenil do Sampaio Correa, no Maranhão. Mas logo tive uma contusão e decidi que
futebol não era para mim”. Vascaíno, a paixão pelo time carioca começou de
menino: “tinha uns 13 anos, e gostava muito de jogar futebol de botão. Estava à
procura de um nome para o meu time quando chegou em casa uma revista muito
famosa na época, que sempre contava a história dos grandes clubes do Rio e de São
Paulo. E naquela edição falava-se do Vasco. A partir de então, passei a
acompanhar os jogos do clube, sempre pelo rádio. Minha relação com o Vasco
começou por acaso.” Por fim, comenta sobre o seu poema mais famoso, “O Gol”: “esse
poema me foi encomendado pelo Elio Gáspari. Ele estava fazendo um livro e me
pediu um poema sobre futebol, e aí me veio isso… Porque poema não é uma coisa
deliberada, em que você escolhe sobre o que vai falar. Ele depende de fatores
aleatórios, então é difícil dizer por que escolhi falar sobre o momento do gol. O poema nasce da necessidade de nascer. Há alguns dias
aconteceu algo assim: eu me levantei para atender ao telefone quando senti um
atrito entre um osso do fêmur e um osso da bacia. Achei engraçado porque,
embora saiba que sou feito de osso, não havia me dado conta disso até aquele
momento. Então comecei a fazer uma série de perguntas a partir desse
acontecimento aparentemente sem importância. E acabei criando um poema que eu
chamei de “Acidente na Sala”. Você veja que coisa: eu fui atender ao telefone e
acabei ganhando um poema!”
Comentários