Bolítica
Por Décio Pignatari
Há dez anos atrás, no começo da primavera, atravessei a
Mancha rumo à Inglaterra, em companhia de um inglês e um israelense. Este
lutara contra os nazistas, no exército de sua majestade britânica, e perdera as
duas pernas dando combate aos árabes, nas lutas pela independência de seu país.
Não era judeu – era israelense, fazia questão de frisar, mostrando um certo
orgulho e uma certa irritação na necessidade que sentia de afirmar sua nova
nacionalidade.
O outro era um operário de volta das férias, velho e bem
humorado militante do Partido Comunista inglês. Com não menor orgulho, exibia
sua carteira de filiação, datada de 1935.
No meio da travessia, a barcaça começou a jogar; o
israelense não podia manter-se de pé, no convés: penoso demais. Ajudamo-lo a
descer para o bar, com as suas três pernas mecânicas (uma sobressalente que
carregava numa caixa) e voltamos para cima, o inglês e eu, rumo a um estranho
bate-papo, entre solavancos e bacias desbeiçadas, lascadas, de ágate,
espalhadas pelo chão, sinistramente convidando a embrulho-de-estômago e a
vômitos.
O velho súdito de Sua Majestade era uma bola. Passou o tempo
todo contando piadas mais do que irreverentes sobre o casal real e – a certa
altura, a uma observação minha, de cujo teor não me recordo – respondeu:
– Não adianta: você dorme, você come, você ama...tudo é
política!
Por motivos óbvios, coloco “ama” onde ele, em inglês,
colocou a palavra certa e concreta – o desbocado. Retribuí o prazer da
companhia e a lição cedendo-lhe os meus direitos sobre a garrafa de uísque a
baixo preço, na hora do desembarque. A última visão que tive dele, já naVictória
Station, foi a de duas saliências nas nádegas rebolando no meio da multidão:
duas garrafas de um-quarto, uma em cada bolso traseiro da calça.
Sabemos todos que o trivial da vida esportiva é condimentado
por fofocas, futriques, politiquices, politicagens e politicalhas – como dizia
mestre Ruy Barbossa; digo – o dr. Ruim Verbosa; melhor – o dr. Rui Barbo Ousa;
isto é – o eminente Rio Barbosa; vale dizer – o legalíssimo Rui Barbosa; enfim
– o Águia de Haia e Mucama.
Já o sr. Medo da Onça Faisão: digo – o nobre deputado Emenda
Onça Falação: enfim – o dr. Mendonça Falcão prefere librar-se nas altas esferas
do que ele julga ser a política internacional. E acaba de comunicar ao dr. João
Havelange, presidente da CBD, que não cederá jogadores paulistas para o
selecionado nacional que deverá enfrentar o da União Soviética nos dias 4 de
julho e 14 de novembro próximos. Alega o referido mentor da FPF que não pode
alterar a tabela do campeonato paulista e, portanto, não pode encontrar datas
que permitam a cessão dos craques paulistas para aqueles compromissos.
Isto significa que a seleção brasileira terá de se
apresentar desfalcada naqueles importantíssimos ensaios internacionais (o time
da URSS pode ser um sério desafiante às nossas tripretensões), simplesmente
porque o dr. Falcão não encontra novas datas para um XV de Novembro vs Esportiva,
ou um Juventus vs Ferroviária – sem falar nos grandes clássicos, que
são transferidos, por acordo mútuo, assim que chova um pouco mais!...
O caipirismo mental – político e esportivo – conduz ao
caiporismo. Se as coisas começam desse jeito, nada mais dará sorte nem certo,
em nosso futebol. Afinal de contas, ninguém tem culpa se o dr. Mendonça já teve
a sua oportunidade de conduzir a nossa delegação numa excursão que ficou famosa
pelos resultados deprimentes.
Imaginem agora se calha de o Brasil vir a ser derrotado pela
URSS, na Inglaterra, em 1966 – já pensaram no bode que vai dar? Será um tal de
IPMs para cima de jogadores, preparadores, massagistas e roupeiros, um tal de
futebol “altamente comunizante”, um tal de “em defesa dos mais altos princípios
morais e cristãos da família brasileira” – e um tal de reeleições,
quivoticontá.
O tempo de fazer média com a bandeira nacional já passou.
Pode ser um patriótimo. Isto não nos obriga a ser patriotários: mandaremos
brasas, brasões e brasis toda vez que joões- mendonças-falcões se afoitarem a
rasteiríssimas bolitiquices.
Pode ser que o meu anônimo amigo comunista inglês não
tivesse razão de todo: mas tinha senso de humor. O dr. João Mendonça Falcão não
tem nem uma, nem outra coisa.
* Décio escreveu crônica sobre futebol durante algum tempo
na Folha de S.Paulo; e foi demitido por causa de um texto com interpretação dúbia. Numa entrevista para o Roda Viva, da TV Cultura, Décio comentou o episódio: "O
Cláudio Abramo [(1923-1987) jornalista que foi secretário de redação do Estado
de S. Paulo em 1953 e que em 1963 passou a ser chefe de reportagem e parte do
conselho editorial da Folha de S.Paulo] que estava lá e tal, soube que eu
gostava muito de futebol - joguei 30 anos de futebol na várzea -, me chamou e
falou: “Eu quero alguém que venha de fora e fale do futebol, mas faça uma
ligação com outras coisas” e tal. E foi realmente muito interessante. Durou
exatamente 26 dias, era fevereiro [risos] e, num dado momento, eu escrevi uma
crônica onde eu imaginei o Pelé ensinando alguns lances de futebol para umas
moças suecas que queriam aprender futebol. Então ali eu usava termos
estritamente de descrição futebolística e aquilo, claro, tinha todo um lado
erótico, maroto, não é? “Não fazer cruzamentos pelo alto à boca da pequena
área”, essas coisas... E o negócio de... Usando todo o jargão da narração
futebolística com um sentido ambíguo e dúbio. Isso foi escandaloso naquele
tempo – que era impossível em 1965, né? -... “Matar a bola no peito”, essas
coisas desse tipo e criou-se um problema lá dentro e eu, quando fui um dia entregar
minha crônica, estava cortado, eu estava despedido.
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