Aguenta Coração
Olha, tenta: segura a bola e alisa, transfere, vagueia, como
se a bola tivesse a lisura de uma boa cabeça, isso, pensa a cabeça do Lula,
metalurgia lanosa, alisa agora bigodes, pradaria, encosta a bola na coxa,
concentra, goza, não era um assim que você sempre queria?
Segura aproximando, te cola, a cabeça entre os peitos, teus dois redondos e
esse terceiro doce lúbrico veemente, respira, engole teu discursivo, a semente
das coisas ausente de fonemas, nos fundos alagados, cala, sofre a bola, pensa
no perfeito de toda redondez, ama essa forma, lambe, respira mais fundo, mais,
dá um tempo, conhece o reverso agora, os avessos, o reverso é a cabeça dos
reis, escurece o gesto, pisoteia, pensa nas tiranias, no soberbo dos outros, os
de escudo e couro, no manso-melado que se fez teu ser, na cuspida de tantos
sobre a tua vida, odeia, agora vai devagar rondando, rondando a bola, e ao teu
redor avalia, avalia sob os pés de quem essa bola-cabeça vai cumprir exata tua
lúdica escondida trajetória, ponta de aço teu pé, liso cortante esse teu chute
vai separar dente e raiz, pensa o redondo triturando o agudo de tudo, uma
bola-matriz triturando farpas botas, esmaga com teu chute o rubro lucro das
multi-irracionais, traz a bola de volta, leve líquida é apenas uma bola entre os
teus pés sobe sobre ela, sobre a vida, equilibra-te no ilimitado tenso, no
lívido gramado, a bola-vida a besta-bola, escuta os urros, patina sobre os
escarros, desacertos ainda, como vês, mas de novo amor intenso como no início
do relato, Lula de pé luzindo metálico sobre o gramado, respira fundo, mais,
conserva-te inteiriça sob o arco desses pés. Goleia.
* O conto foi
publicado originariamente no livro organizado pelo escritor Flávio Moreira da
Costa, Onze em campo e um banco de primeira, em 1998, pela Relume Dumará; e
depois, reeditado numa edição ampliada, de 2006, 22 contistas em campo, pela
Ediouro.
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