Véspera da água, de Eugénio de Andrade

Por Pedro Belo Clara



Voltamos ao universo eugeniano com o intuito de abordar a obra que, em conjunto com outras editadas em anos relativamente próximos, por muitos é considerada um dos pilares centrais da mais amadurecida fase poética deste destacado autor.

Publicada em 1973, Véspera da água é um livro que desenvolve as intenções poéticas sugeridas por Ostinato Rigore (1964) e Obscuro Domínio (1971), partilhando com os mesmos não só determinados preceitos comuns à temática de Eugénio como, de igual modo, fomenta a evolução dos mesmos. Por isso, poder-se-á dizer que este trabalho representa uma tentativa continuada de aperfeiçoamento de formas, estilos e temas.

De facto, se nos familiarizarmos com os anteriores volumes publicados, iremos não só verificar a habitualmente depurada e translúcida imagem poética (ou a frugal raiz do vocabulário de sempre, embora cada vez mais rico e empregado em verso seguro), como também significativas mudanças ao nível do uso da pontuação (tendencialmente rarefeita) e da disposição de alguns versos. Na realidade, o anterior trabalho, Obscuro Domínio, havia já  sido um campo de ensaio para tais inovadoras explorações, ainda que tímidas ou, sob um outro olhar, introduzidas de forma calculada e subtil – por forma a fomentar um crescimento de modo sustentado (se de crescimento se trata efectivamente o caso). Vejamos um breve exemplo, atentando na colocação do terceiro verso:

O outono
por assim dizer
                        pois era verão
forrado de agulhas

(fragmento de "Labirinto ou alguns lugares de amor")

Tais incursões iam-se tornando, assim, cada vez mais frequentes na poesia de Eugénio, embora nunca viessem a assumir um lugar de absoluto destaque. O poeta, pelo que se depreende, era extremamente zeloso na criação do seu trabalho e na lapidação do mesmo (acto que considerava ser de uma extrema importância). De que outro modo se garantiria o brilho e a máxima expressão de uma poesia concreta, amiúde luminosa e depurada?

Mas a tríade poética que aqui se refere não só condensa ao nível estilístico e vocabular as melhores produções do poeta. Se tomarmos em conta a opinião de Federico Bertolazzi, um seu atento leitor e prefaciador da mais recente edição da obra em causa, ambas representam magistralmente a "exactidão da linguagem" que naturalmente se deseja "concentrada e rarefeita". Essa busca, se não paixão, pela "concretude e pela clareza" será o que mais caracteriza o poeta e, pelo mesmo o ter efectuado de modo tão seguro e sublime, aquilo que o diferencia dos demais e garante o lugar de destaque que referências como Eugénio de Andrade merecem. Além disso, se em anteriores publicações tanto tempo dedicámos ao poeta, não faria de todo sentido excluir desta análise periódica um livro tão central quanto este.

A ligação entre as obras conhece um novo ponto de encontro no título daquela que hoje se apresenta. Como é hábito no autor, encontramos sempre um poema cujo título de epígrafe serve, igualmente, à obra que o acolhe. Contudo, Véspera da água vem contrariar a tendência de sempre: o poema que lhe dá o nome encontra-se em Obscuro Domínio, o livro a que este sucede. Mais uma prova de que a obra parece ter nascido da anterior, editada apenas dois anos antes. Não a consideremos, no entanto, uma renovação daquela que a precede (embora a evolução seja notória) ou uma mera extensão da mesma. No fundo, Véspera da água surge como o resgate desse poema ("Tudo lhe doía / de tanto que lhes queria") e como a continuação e desenvoltura da essência que o forjou, expressa agora sem os óbvios limites que antes a condicionavam. Pegando nos dois trabalhos, veremos igualmente que ambos se iniciam em termos metalinguísticos, o que só reforça a raiz comum que aparentam possuir: "(...) recomeço, / pedra sobre pedra, / a juntar palavras" ("O ofício", Obscuro Domínio) ; "Eis sílaba a sílaba de uma cor perversa / o tempo quase nu para levar à boca" ("Sílaba a sílaba", Véspera da água).

Mas nesta obra em particular existe a elevação de algo que tão bem caracteriza a poesia de Eugénio e, de forma nada enfadonha, é habilmente desenvolvida e consolidada: a metáfora. No fundo, a maioral beleza dos seus versos deve o seu lúcido efeito a este recurso estilístico, mais do que a inspirados adjectivos ou pertinentes substantivos. A metáfora chega mesmo a atingir novos patamares e dimensões, como que fomentando uma “reinvenção real”. Tal acto tem um seguro efeito: a pura exaltação do grandioso valor e impacto poético da metáfora. O poema “No extremo do possível”, transcrito na íntegra, é somente um entre muitos exemplos:

A casa
privada de mastros
facilmente é
exígua e rasa

Azul estridência
do silêncio
o céu
consome-se na pedra

O cume é na água.

Sabemos já que o estilo habitual de Eugénio se pauta pela depuração e pela luminosidade dos seus versos, imperando palavras simples e claras de por vezes complexa compreensão, onde amiúde a mesma, isto é, a interpretação, parece se inferiorizar perante a contemplação que cada verso fomenta e quase exige. Mas é da metáfora, sempre criativa e com mestria elaborada, que tudo se ergue e constrói, não se assumindo assim como um adorno de circunstância, mas como uma fincada e bem fundada origem. É precisamente por isso, e dado a extrema abundância das mesmas ao longo desta obra, que prevalece um sentido diferente de leitura. Ou seja: mais do que tentar compreender cada verso de simples palavras e complexos sentidos à luz da razão, importará antes aceitá-la e nela empreender uma serena contemplação, até que a imagem poética que daí se subtrai enfim adquira contornos e forma visíveis. Este parece ser o desafio mais intrincado que o livro oferece, sem dúvidas, mas muito ganhará o leitor que o aceitar. Na subtil leveza das palavras impressas, bem como nas suas poéticas sugestões, reside uma fluidez de sentimentos de enorme substância. Não importa, por isso, colocando a ideia em termos simplistas, tentar compreender o motivo do tigre ser azul. Antes imaginar um... tigre simplesmente azul – e aceitar o que essa imagem nos poderá querer transmitir ou sugestionar. 

Não obstante essa constância estilística, a obra serve igualmente outros motivos por forma a expandi-los ou a maturá-los. Um desses exemplos é a faceta de “poeta do corpo”. Em “Sobre as ervas”, as intenções eróticas de sempre, descritas com sublime musicalidade, leveza e beldade, são elevadas a uma dimensão artística elevadíssima, ainda que as mesmas não se encontrem aqui em tão grande número como acontece em Obscuro Domínio:

Já sobre ti
de aroma em aroma
os lábios todos
            caem
nupciais ou mortais os corpos
são para penetrar
            lenta
            oh
            lentamente.

Tais retratos, como anteriormente se disse, não abundam. O poeta optou antes por preencher de silêncio as diversas frestas daquilo que nos presenteia. Esse desejo de mudez e quietude, diga-se, não é propriamente virgem em Eugénio. Basta recordar o poema “Quase nada”, um dos seus primeiros trabalhos publicados, e veremos como já então o amor (no caso), de tão frágil, ignorava a sapiência maior: "Serve-se das palavras/ por ignorar/ que as manhãs mais limpas/ não têm voz". Na verdade, a sua poesia almeja o silêncio. Contudo, a contradição torna-se óbvia: como ser poesia se a poesia exige a palavra e a palavra não comporta silêncio? Dentro dessa fina e dúbia linha certos poemas são traçados, prolongando-se mesmo pela "porosa fronteira do silêncio" (“Sobre a palavra”).

Também a época em que a obra foi publicada não deve permanecer esquecida ou ser relegada para planos de inferior consideração. Afinal, ainda que não fosse habitualmente interventivo, as questões sociais sempre preocuparam Eugénio e o mesmo, pertinente, nunca abdicou da palavra quando sentia que o seu motivo seria válido. Por isso mesmo, de forma algo esbatida, ao longo da obra são reconhecidos lamentos que traduzem a pálida e macerada face do Portugal de então. Desde a denúncia de um "país que não conhece/ sequer o sabor da sua própria nudez" (“Sobre a razão”), passando pela resignação perante a inevitável verdade ("é tudo o que me resta de um país/ cuja tristeza é cada vez mais vil", “Prosa de centenário”) até desembocar no mais comovente dos lamentos: "Neste país/ onde se morre de coração inacabado/ deixarei apenas três ou quatro sílabas/ de cal viva junto à água" (“Três ou quatro sílabas”). Mais lamentoso ainda é o triste facto de a simples mudança de regime não ter findado os lamentáveis hábitos de então.

Apesar de todas estas variantes, que poderão conceder ao trabalho uma certa fragmentação de conteúdo, a obra apresenta uma unidade fortíssima, ainda que a mesma mais sobressaia ao nível estilístico. Na verdade, Eugénio por décadas dedicou-se a encontrar novas e sempre criativas formas de por outras palavras e outras referências exprimir o mesmo. Correndo o risco de se lhe colarem rótulos como “repetitivo” ou “enfadonho”, o poeta merece o mérito de quem a cada trabalho consegue renovar o seu estilo e forma –  elevados quase sempre a patamares superiores, se comparados com trabalhos antecedentes. Por isso, os retratos solares que o caracterizam e a fina melancolia habitual continuam presentes na obra em questão, mas habilmente reinventados. Um dos efeitos mais lustrosos desta prática é a “sensação de primordial” sugerida pelo verso cada vez mais limpo, cada vez mais depurado e luminoso. O tempo retrocede, e em cada coisa descobre-se a raiz primeira:

Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol

Mas, se aguçarmos a percepção, será que podemos dizer que este livro se trata de um registo que em si guarda a despedida do verão? Escrito, talvez, na iminência da chuva? Em diversos momentos, tal ideia parece ajustar-se. Evoco o poema “Senza Colore”: "Estou à espera/ duma tarde semelhante ao sono das maçãs". Em parte, por essa razão a melancolia que perfuma as páginas da obra encontra aqui uma sólida justificação. Afinal, como pode o “poeta da luz” com um sorriso nos lábios aceitar a passagem da estação e o começo da sombra? - "(...) o inverno vai chegar/ (…)// (…) é o silêncio é por fim o silêncio/ vai desabar" (“Sobre flancos e barcos”).

Mesmo num registo de iminente “fim de ciclo”, a obra sustenta um outono puramente amadurecido de cores, douradas como nunca, brilhando no esplendor da sua fugacidade. A chuva ameaça tombar, a despedida da estação e do amor aproxima-se, mas da aparente resignação há-de nascer a raiz de uma outra esperança, de uma outra estação, de um outro amor.

Por enquanto, permanecerão os sobejos. Em plena Véspera da água.

Nenhum pensar agora: calma
e profunda corrente de silêncio
entre mim e o que de mim ainda
se aproxima: simples fulgor
antes de arder no cume
talvez a cal: ou só o seu rumor.

Ligações a este post:
Pedro Belo Clara escreve sobre Obscuro domínio, de Eugénio de Andrade
Do mesmo autor, resenha crítica para Coração do dia, Mar de setembro
Na coluna Os escritores notas biobibliográficas mais um catálogo com poemas de Eugénio de Andrade.

 ***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).

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