Vem a luz um Fitzgerald censurado
F. Scott Fitzgerald censurado. Ou, como preferia enfocá-lo a
revista estadunidense que publicou seus contos ao final dos anos vinte e
princípio dos anos trinta “sensivelmente editado” para não ofender a seus
leitores com cenas de nudez, referências ao abuso de álcool e a drogas ou
palavras depreciativas que traziam preconceito racial. Essa nova versão, que à
base de exclusões erradicava a importância mais crua e realista, é a que acabou
sobrevivendo como parte do legado literário de um dos grandes romancistas do
século XX. Oito décadas depois de que o escritor estadunidense aceitara os
cortes por necessidades de sobrevivência, uma nova edição com uma antologia de
contos consegue recuperar pela primeira vez um Fitzgerald em versão original.
O estudo dos textos datilografados pelo próprio autor, das correções
que anotava a mão para esboçar os contos antes de enviá-los aos chefes da
revista Saturday evening post (naqueles
anos, sua principal fonte de renda), permitiu a editora Cambridge University
Press recuperar seu verdadeiro formato. A ambiciosa edição que acaba de chegar
com a publicação no Reino Unido de sua quarta e última antologia Taps at Reveille (1935), “nos revela histórias
muito mais complexas e realistas do que o que se lia na versão retocada”, explica
o professor James West, responsável pelo prodigioso trabalho de restaurar à
origem Scott Fitzgerald.
As blasfêmias ou os insultos antissemitas que proferem
alguns personagens – e que, conforme precisa West, não correspondiam ao
sentimento do autor, mas mera exposição da realidade – era, por exemplo, amenizados
ou diretamente erradicados. Fitzgerald queria que suas criaturas falassem como na
vida real, mas seu editor temia que com isso espantasse o público da revista. Em
grande parte, o assunto era resolvido com uma borracha ou, em caso das descrições
dos nus, vestindo aos personagens, de modo que a cena acabava perdendo todo seu
sentido. Os cortes também eram implacáveis quando se fazia referência aos
excessos etílicos ou com substâncias proibidas. Todas estas mudanças “causavam
confusão ou se traduziam numa montagem, por vezes, sem lógica da história”,
sublinha o professor ao aludir em particular a Babylon revisited, uma homenagem à Era do Jazz que rememora os anos
de Fitzgerald como exilado em Paris e que é considerada – apesar das alterações
sofridas – uma obra mestra do gênero.
West, que dedicou os últimos vinte anos de sua vida na investigação
do material depositado na biblioteca da Universidade de Princeton, reivindica a
profundidade que destilavam esses originais que nunca vieram a lume, em
contraste com a “ligeireza” que já em seu tempo se imputou às versões censuradas
e finalmente publicadas. O conteúdo das antologias de contos, conclui, está “no
mesmo nível que o dos romances” do autor de O
grande Gatsby, mas só agora podemos
saber disso.
F. Scott Fitzgerald chegou a escrever 178 contos, que foram
vendidos ao Saturday Evening Post e a
outros meios, para manter sua família ao longo de uma fase dominada por
problemas com sua companheira Zelda e pelos inconvenientes do seu próprio vício
com o álcool. Nunca chegou a denunciar a quem censurava seus textos, porque
necessitava dos que faziam isso; tanto que foi pelas mãos desses censores que
se tornaria, mesmo de forma precária, roteirista em Hollywood.
Na introdução ao volume de Taps at reveille, que, como dissemos, inaugura a edição inédita da
Cambridge University Press, o professor West considera inútil uma crítica a
atitude dos responsáveis pelo Saturday
Evening Post sem ter em conta o contexto. “Essas eram então as regras de
mercado: Fitzgerald, na qualidade de autor profissional, as aceitava. A revista
circulava principalmente entre os leitores da classe média e por isso tentava-se evitar qualquer tipo de expressão potencial para ofensas, fosse para os
leitores ou para os anunciantes”.
O conjunto daqueles contos lhe rendeu um total de quase 4 mil dólares
na época. Só a metade dessa cifra é o que haviam pagado pela publicação de O grande Gatsby, seu retrato da decadência e da agitação social na
América dos anos vinte que já passou para os anais da literatura como um dos
grandes romances de todos os tempos e que, até agora, tem sido objeto de três versões
cinematográficas. Mas, no lançamento do livro em 1925, só foram vendidas 25 mil
cópias e a obra nunca alcançou o reconhecimento até depois da morte do autor,
em 1940, aos 44 anos.
Os pesquisadores vaticinam que a descoberta de tudo o que o
escritor verteu na ficção curta – um gênero que considerava difícil –, mas cujas
essências acabaram guardadas numa caixa, vai mudar a percepção que se tem de Scott
Fitzgerald contista. Ao desbaratar a noção de que era um autor cuja marcada
veia sentimental podia está restrita à vocação do realismo. Porque,
simplesmente, em muitas ocasiões não teve outra alternativa.
* Versão livre para "Scott Fitzgerald, en versión original", de Patricia Tubella em El País
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