Shakespeare e a morte em Romeu e Julieta
Por Lee Pontes
A reconciliação dos Montecchios e Capuletos sobre os corpos de Romeu e Julieta. Frederic Lord Leighton |
Em Como e por que ler, o crítico literário Harold Bloom diz:
“talvez, a obra de Shakespeare não devesse ter se tornado para nós uma
escritura secular, a meu ver, ela é a única rival possível da Bíblia, em força literária”.
Tais palavras podem, para o leitor (caso esteja vestido dos valores religiosos cristãos), ser consideradas uma blasfêmia. Ora, colocar um texto como Hamlet ou
Rei Lear ao nível da escritura bíblica, é afirmar que a literatura pode se
tornar um pilar cultural para além dos muros da nação de seu nascedouro.
Um fato é certo, seja em qualquer nação ou qualquer cultura,
ler Shakespeare é fundamental. Não por ser o maior dramaturgo ocidental, mas
por seus personagens serem tão grandes, que, não mais pertencendo à vida
inglesa, universalizam o homem e seus dilemas. Poderíamos tratar de Hamlet, o
mais aclamado texto, ou Rei Lear, o protótipo de Deus-Pai. Entretanto, o drama
de Romeu e Julieta talvez seja mais conhecido que Hamlet, pois trata do amor filho
de um único ódio, como dirá Julieta ao descobrir a identidade de Romeu.
A peça apresenta a certeza da morte dos amantes, bem como a
culpa dos pais. Era impossível uma união entre as casas de Montecchios e de
Capuletos. Harold Bloom, no livro Shakespeare: a invenção do humano, tratou da
peça na parte referente às tragédias de aprendizado e afirma: “o amor de Romeu
e Julieta é o exemplo máximo da paixão saudável, normativa, em toda a
literatura ocidental”. Creio em Romeu e no seu cego amor, creio no profundo
amor de Julieta, não pelo fim trágico, mas pela tentativa de unir as duas
casas.
O fato da peça ser tão popular, faz que a crítica
especializada a observe não com muito cuidado e alguns aspectos ficam em
ocultos. Harold Bloom ainda em Shakespeare: a invenção do humano, diz: “Embora Romeu
e Julieta seja um triunfo do lirismo dramático, o desfecho trágico ofusca os
demais aspectos da peça, deixando-nos em tristes conjeturas com relação à
eventual responsabilidade dos jovens amantes pela sua própria catástrofe” (1998,
p. 123). O casal não tem controle, a
morte não foi escolhida, foi imposta. A morte não os escolheu, eles a
escolheram.
Romeu e Julieta acabam por purificar o ódio dos pais, como
fica expresso no prólogo: “... em sua sepultura o ódio dos pais depuseram...”. Os amantes não queriam a morte e nem a buscavam, planejaram resolver tudo com
uma farsa, mas foram surpreendidos na própria farsa. Pouco antes de adentrar a
casa dos Capuletos, Romeu tem um surto epifânico e fala que seu espírito
apreende algo que está a pender das estrelas, cujo curso fatal inicia-se com
uma morte não desejada ou extemporânea, como será a morte de Mercúcio. Bloom
fala que os críticos tomam essa referência ao astrológico de modo negativo, e
diz: “Na verdade, a culpa da destruição da extraordinária Julieta não pode ser
imputada apenas às estrelas”(1998, p. 123). A culpa da morte do casal recaem sobre os
pais, as estrelas revelam simplesmente o fardo pesado dos amantes. O Príncipe
de Verona dirá: “Vede como sobre vosso ódio a maldição caiu e como o céu
vos mata as alegrias valendo-se do amor” (2002, p. 171).
Na revolução elíptica da peça, a morte vai ficando presente,
fortifica-se, torna-se uma personagem, como é em Hamlet. A morte foge do casal,
mesmo estando próxima, a colecionadora de gente não os deseja. Desvia suas
intenções assassinas para Mercúcio e Teobaldo, amados dos amantes. Se os mata é
para afastar os amantes de si. Vejamos Julieta, a donzela de ímpeto forte, é
bem a frente de seu tempo, mesmo sendo submissa ao desejo paterno, é capaz de
procurar auxílio para não se render a tal. A morte de Teobaldo, pelas mãos de
Romeu, deveria afastar os amantes. Julieta entra em crise, chora a morte do
primo ou o exílio de Romeu.
Julieta supera em eloquência Mercúcio, suas falas
transbordam de emoção: “Oh coração serpente, mascarado com feições de uma flor!
Em algum tempo dragão já houve em cova tão formosa?” Eis que instala-se as
antíteses: monstro atraente, angélico demônio, corvo de belas penas,
cordeirinho devorador como o insaciável lobo, substância desprezível de
aparência mais que divina, justamente o oposto do que mostravas ser (cf. Shakespeare,
2002; p. 101). Nessa peça não se instala um vilão, nem se pode dizer que seria
a morte o vilão. Entretanto, o dínamo da ação é o ódio entre Capuletos e
Montecchios, e tal sentimento acaba por ser o vilão da narrativa.
A ceifadora de vidas tem por dever a busca das almas, cumpre
seu destino, como mostra a abertura da peça. A única morte praticada é a de
Teobaldo. Mercúcio fora ferido de morte por acidente, Teobaldo não desejava
matá-lo. Não se vendo com responsável, Romeu deseja vingança e cobra o mesmo
valor. Vale ressaltar que o primo de Julieta é mais habituado a luta de espada,
é mais velho e forte. Entre os dois, a morte pega Teobaldo por meio de seu
valente peito transpassado pela espada de Romeu. Ao falar sobre a morte do
jovem à Julieta, Ama mostra uma face oculta e passa a orientar a donzela a
casar-se com Paris.
Julieta não se entrega a morte, tampouco deixa de amar
Romeu. A morte ama o casal e, por isso, a escolha por levar Mercúcio e
Teobaldo, como forma de separar os amantes, conquanto não se efetive um
rompimento. Julieta sofre o dilema de chorar por Teobaldo ou por Romeu. Mas a
ideia de ficar com Romeu tira o medo e a dor, uma vez que estava sem norte, a
menção do nome do amado devolve-lhe a esperança. Romeu, que antes negara o
nome, agora voltava ao mesmo ato. Atirado ao chão da cela do Frei Lourenço,
portava-se mais como rato com lágrimas femininas, nas proposições do Frei, do
que como o homem que devia ser. A presença de Ama traz conforto e orienta a
visita noturna aos aposentos de Julieta.
A morte volta à cena por meio de Frei Lourenço: “Dos lábios
lhe saiu uma sentença mais branda: não a morte para o corpo, mas o exílio do
corpo (2002, p. 105)”. Ficar longe de Julieta é maior pena que a morte. A
colecionadora de gente desvia-se do casal, ela os protege. Já o ódio entre as
famílias espreita e os caça. Romeu constrói o exílio como um monstro de olhos
de horror, assim, o faz desejar a morte, pois o uniria à Verona, lar de
Julieta, mesmo o mundo grande e largo de Frei Lourenço não o cativa. Morrer não
é morte, mas ser banido de Verona é a morte. Julieta partilha o mesmo pesar. A
dúvida na sua dor: chora a morte de Teobaldo ou o banimento de Romeu? Apenas o
frei dota a morte de vilania, pois para os amantes a morte é amiga, já que ela
os une.
O ódio entre as famílias provoca toda a desventura,
Shakespeare deixa claro na abertura da peça que aquilo que dormia é acordado e faz
manchar as mãos fraternas com o sangue irmão. Refere-se ao sangue de Mercúcio e
Teobaldo, irmãos em sentimentos de Romeu e Julieta, respectivamente. A peça
encanta não pelo suicídio do casal, mas por revelar o drama do “amor em tempos
de cólera”, parafraseando Márquez. Não
existe um vilão, senão o ódio que as famílias alimentam e nutrem nas desavenças.
A morte cumpre seu papel de colhedora e apaziguadora, conduz para o seu lado o
casal com pesar, ela obliterou sempre, que eles estivessem do seu lado. Eis o Príncipe: “Esta manhã nos trouxe paz
sombria: esconde o sol, de pesadume, o rosto. Ide; falai dos fatos deste dia;
serei clemente, ou rijo, a contragosto, que há de viver de todos na memória de
Romeu e Julieta a triste história” (p.172).
Bloom diz: “A popularidade permanente de Romeu e Julieta,
que, nos dias de hoje, alcança uma intensidade mítica”(1998, p. 125). Shakespeare
criou o protótipo de amor juvenil, não se podia matar o amor, como bem observa
Harold Bloom, assim, opta-se por se matar os amantes, mas não foi fácil tal
solução, constantemente, a morte foge e se nega leva-los. Ao fim, o autor já
está envolvido, como o leitor, com o casal, o cria-se o mito do amor, pois este
se vestiu de Romeu e Julieta, não foi à morte trágica que os uniu, mas a cena
do peitoril da janela em que a jura de amor é feita e o casal passou a existir
como um mito para além das fronteiras inglesas.
* Lee Pontes é jornalista e linguista. Estuda o mal na literatura no Grupo de Estudos Vertentes do Mal na Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é bolsista CNPQ em Linguística de Texto (UFC). A literatura surgiu na infância como forma de castigo, virou um hábito e uma forma de vida. Toma a escrita como forma de expressão superior, pois é a língua em sua potência máxima. A graduação em jornalismo foi pela Universidade Estácio de Sá e o curso de Letras é na Universidade Federal do Ceará.
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