Paz de Espírito

Por Rafael Kafka



Essa é mais uma crônica que começa citando Sartre. Fazer o quê se desde um pouco antes de começar a escrever no Letras eu já estava imerso no existencialismo como uma forma de cura para os meus problemas? Peço perdão aos meus leitores.

Um dos livros dele mais interessantes lidos por mim foi As Palavras. Creio nunca ter falado desse livro em uma resenha especificamente, mas vivo a citá-lo em diversos textos por conta da retomada que Sartre faz de sua infância. Algumas pessoas, como Nelson Rodrigues, não acreditam na forma como o autor de O Ser e o Nada  desenvolve a reconstrução de sua infância. Para elas, aquilo é um personagem criado pelo existencialista para justificar o seu modo de ser.

Apesar de ter ficado abismado com uma argúcia de pensamento muito assustadora para mim em uma criança de seis anos de idade, confesso que o retrato do jovem Jean-Paul Sartre muito me tocou. Mesmo sendo um livro curto, As Palavras consegue ser intenso e memorável: nele vemos o gênero textual autobiografia transformado em uma espécie de ensaio sobre a situação do pequeno infante que mais tarde ganharia o Prêmio Nobel de 1964 e seria um expoente do pensamento de esquerda do século XX.

Basicamente, Sartre mostra como a morte prematura de seu pai (quando ele estava com poucos dias de vida), a pouca idade da mãe e os cuidados intensivos de seus avós o transformaram em uma pessoa desde muito cedo autossuficiente. Por se ver rodeado de amor, o jovem Jean não sentiu em sua vida aquilo a que chamamos de ciúmes, o que muito explica de sua vida amorosa com a sua companheira Simone de Beauvoir. Vivendo de forma isolada, o jovem começou a se afundar nas histórias contadas por seu avô e depois nos livros da biblioteca dele, com direito à criação de suas próprias histórias, que mais tarde seriam destruídas. Aos sete anos, após o primeiro corte de cabelo, Sartre descobre que não é nada demais: apenas mais um garotinho feio que nada tem de prodigioso.

Para muitos, isso seria um sinal de baixa autoestima e o surgimento de uma mente miserável. Porém, sabendo-se nada demais, Sartre começa a pensar em como deixar a sua marca neste mundo para que mesmo depois de sua morte ele siga, de algum modo, vivo. A mente fria, isolada, dá então lugar a um gênio capaz de escrever em praticamente todos os gêneros possíveis: ensaios (alguns gigantescos com volumes de 900 páginas), peças teatrais, artigos, romances, contos, cartas e um interessantíssimo diário de guerra que mostra como desde cedo a escrita sartreana é fascinada com a situação vivida pelo indivíduo e como o seu universo pessoal se exterioriza para ir ao encontro do mundo.

De certa forma, ainda vejo Sartre de forma muito idealizada. Quero ler mais uma vez os seus diários e suas cartas a Castor (Simone) as quais ainda não achei. Todavia, uma coisa ele sempre me pareceu ter: paz de espírito. Mesmo com um ar indiferente, o qual fez Simone procurar amores mais intensos como em Nelson Algren e Jacques Lourent Bost, Sartre era um ser apaixonado pela vida, capaz de em um mesmo dia escrever e ler até os olhos ficarem doendo, e curtir uma imensa noitada com os amigos e companheiros de luta política e intelectual.

Sartre representa para mim uma quebra de paradigma: até conhecer a sua obra, eu imaginava que os poetas em geral eram seres miseráveis cuja única beleza na vida era o sagrado da escrita. O pequeno Jean-Paul me mostrou que a leitura é uma atividade mágica, mas banal, capaz de ser feita por qualquer um. E mais: um espírito cheio de leitura sempre vai querer escrever no papel, pois somos sociais até quando estamos sozinhos. A escrita é o desafogo daquilo que fica dentro de nós após muita leitura: é o desejo não apenas de imitar o que lemos, mas de passarmos adiante o que sentimos perante o mundo e de também nos tornarmos eternos e vistos.

A lição que Sartre me ensinou é justamente essa: a vida em si é nada. Vamos de um ponto a outro; cada ponto nos dá algo novo em troca, um aprendizado novo e uma vontade de compartilhar mais e mais coisas. Lemos pessoas, lugares, livros, filmes, obras de arte plástica, etc. Lemos tudo. E seguimos lendo até o dia em que morrermos. Toda a fala ativa proveniente disso gera o silêncio e a paz que li em uma tirinha de Dik Browne por esses dias.

Numa tira, Hamlet, filho do célebre personagem de HQs Hagar, é perguntando por uma moça sobre o que os livros têm que ela não pode oferecer. Ele então responde:

– Paz e silêncio.

A resposta é sucinta, mas muito profunda. Os livros dão paz e silêncio a quem se entrega a eles. Pois “tolo” que seja o tema, os livros como qualquer forma de mídia propiciam um contato com outras formas de pensamento, rompendo barreiras de tempo e espaço. Quando lemos, queremos compartilhar o lido e passar adiante nosso entendimento. E mais: queremos ir a fundo nas fontes do conhecimento ali exposto. Pulamos de galho em galho, literariamente falando. Aí entendemos que a paz trazida por livros é diferente da que muitos podem pensar ao ler a frase do jovem Hamlet.

Sentimos paz nos livros por eles não nos deixarem parados. Sou do tipo de pessoa que não consegue ficar parada. Nesse sentido, uma obra que me provoque intensamente e me leve a ler mais obras do mesmo ou de outro autor é uma obra que me soa salvadora. Por isso o existencialismo para mim é salvador: pois mostra como nós, seres humanos, em nossas existências, somos nômades a flutuar de situação em situação. Sem parar. Por mais que tenhamos uma visão estagnada de nós mesmos e de nossos conceitos, vivemos a mudar. Ser livre e ter paz de espírito é ter consciência disso e saber lidar com o fato de que em lugar nenhum a que formos seremos plenos de sentido e de viver.

A vida sempre cobrará mais de nós.

*
A tirinha de Browne, de quem sou muito fã, disse-me muito e por isso tocou bastante fundo em meu âmago. Acredito já ter falado aqui de como há um incômodo em mim pelo fato de muitas vezes eu perceber que não consigo mais, como outrora, ficar horas longe do mundo lendo um livro e escrevendo coisas provocadas por ele na forma de versos brancos ou outros tipos de garatuja. Eu me sinto traindo o sagrado do momento da leitura por conta da procura de uma paz e um silêncio que pessoas virtuais não podem me trazer.

Caro leitor, essa crônica tem um caráter pessoal demais. Por isso assumo a quem estiver me lendo neste momento que sofro da carência afetiva em seu aspecto mais pós-moderno: aquele em que não conseguimos ficar em contato conosco mesmo por muito tempo sem escorregar em uma conversa virtual, simulacro de contato humano genuíno, abandonando todas as delícias de sentir sozinho consigo mesmo repleto de coisas a serem saboreadas e vividas: como a leitura de um livro, o pensamento transformado em poesia ou mesmo um sono tranquilo. Sim, eu sofro desse mal cotidiano dos seres presentes ausentes, que estão em um lugar sem lá estar.

Todavia, o que para muitos pode parecer normal, para mim parece aterrador. Em meus tempos de criança e adolescência, eu via como os jovens de minha idade não conseguiam ficar sozinhos consigo mesmos, sempre procurando fugas na forma de festas, sexo tresloucado ou amores intensamente grudentos e possessivos. Hoje, a isso tudo se soma o celular com internet pronto a ser usado em diálogos vazios de sentido, sempre permeados pela busca do outro como objeto que disfarce o vazio de si mesmo ou que contemple os desejos carnais.

Não estou aqui dizendo que devemos achar ruins nossos avanços tecnológicos. Pelo contrário: o que procuro viver é um uso consciente disso, para que o ser humano não se perca ainda mais de si mesmo em nosso mundo sem norte definido. O que ocorre ao meu redor são pessoas que vivem a fugir de si mesmas, procurando no outro seja pelo sexo seja pelo amor, a cura de seus problemas: a concretização de seu ser. A meu ver, deveríamos justamente procurar a cura no termo usado por Heidegger: cura como sendo passado, futuro e presente juntos em um ser que não é o que é: é o que quer ser e pode ser, sendo único a cada momento. Em suma: a cura não está em procurar um lugar fixo para se alojar, e sim na assunção de que sendo nada e não tendo lugar definido devemos fazer do mundo nosso lugar mutante e brincar de ser estrangeiro sem nos prender a nada.

É esse silêncio e essa paz dos quais fala Hamlet, ao menos para mim. Os livros propiciam essa possibilidade acessível de estarmos em todos os lugares ao mesmo tempo e de querermos crescer sempre e mais, não para chegar ao um lugar definido, mas sim para sermos criaturas contentes com o fato de que nunca iremos parar de crescer e de que nunca chegaremos a um modo de ser definitivo em nossas vidas.

Isso para mim é paz de espírito. Contudo, por problemas pessoais meus, caro leitor, ainda me sinto longe dessa paz de espírito. Ao contrário do pequeno Sartre, não tive todo o amor do mundo e cresci extremamente carente disso. Deve ter sido por isso que virei escritor: para ser amado ao menos quando lido por leitores pacientes. Todavia, não acho normal essa procura incessante pelo outro. Não mesmo. Acho que a paz de espírito está em mim, aqui dentro, nos olhos que percorrem as páginas dos autores que amo e que me mostram suas visões desse belo mundo onde vivemos. O que me falta é a força de mergulhar sem medo em meus afazeres e leituras e dialogar com pessoas que como os livros me tragam paz e silêncio por me mostrarem o que há de grandioso nesse mundo.

*
Pessoas que têm essa paz de espírito sartreana são criaturas que amam essa paz e esse silêncio inquietantes e inquietadores. São pessoas que pulam de livros em livros como se não houvesse amanhã, não por desejo de ter quantidade, mas porque a sede pelas letras é algo simplesmente sem pausa. Eu sinto que tenho isso, porém o meu desejo por companhias me faz em diversos momentos trair o momento solitário mais sagrado de minha vida para fugir desse vazio que me perturba...

O que me consola é que me incomodo demais com isso e passei a me incomodar demais da conta de um ano para cá. Desde então, passei por períodos de melhora e piora, e hoje me sinto melhorando mais e mais. Contudo, em um ritmo lento. Quero chegar logo ao momento em que eu entro em meu e-mail e meu Facebook, vejo as mensagens que me mandaram, respondo; saio para tomar banho, comer algo, beber um café e começar a ler por uma hora, pelo menos, toda minha e só minha. Quando me der vontade, entrar em meu Twitter, Facebook, blog, sei lá, e postar algo ligado aos meus pensamentos sobre a existência, a arte e a leitura. Mas não ficar preso às redes sociais. Fazer como um vídeo que viralizou prega: desligar os gadgets e ir para a rua mesmo, com pessoas, ler esse mundo que está por aí esperando ser lido por nós para ter significado.

Posso dizer que esse texto é uma espécie de desabafo público sobre essa inquietude sentida por mim perante a forma como ajo mal diante de tanta comunicação hoje em dia. Falamos tanto, mas o que há para ser falado? Quando eu me encanto com o diálogo de alguém, chamo essa pessoa para beber algo e trocar ideias até as vozes aguentarem e as mentes cansarem. Prefiro escrever e-mails longos a alguém expondo todas as minúcias da tessitura de meu pensamento a somente então a trocar essas mensagens frias de nossos chats. Quero ter a segurança necessária para usar e abusar de meu nada de ser, ler sempre mais e viver a vida com aquele sentimento de religiosidade que Mário de Andrade disse em uma carta a Carlos Drummond de Andrade.

Isso parece simples, não? Parece. Mas há o medo da solidão. Há o medo da falta de norte. O norte mais fácil existente para nós é o outro: por piores que sejam nossas relações, aquele outro ao nosso lado justifica dores, sofrimentos, rotinas insípidas, e a justificativa, por pior que seja, nos dá o consolo da certeza. Engraçado como o ser humano é em diversas situações: deixa de viver algo novo somente pela certeza de que terá o certo pela frente, evitando assim romper relacionamentos, hábitos e vícios somente pelo prazer da certeza. E essa necessidade de certeza, a meu ver, é que nos mata.

É essa certeza que procuramos quando deixamos de nos sentir sós e felizes com nossos livros, papéis, filmes, letras, séries para irmos falar sobre nada em nosso não lugar virtual. Procuramos paz de espírito no lugar errado: no outro. E por conta disso, ficamos sozinhos em nossos quartos jurando-nos em conjunto com os outros, quando eles, assim como nós, estão apenas fugindo de si mesmo, desafiando tempo e espaço no sentido de estarem ao mesmo tempo lendo um livro e matando o prazer estético do ato para responder algum galanteio bem ou mal feito ou algum convite para o sexo desenfreado.

Estamos bem longe de nós. Alguns seres raros, não. Têm essa paz que descrevi como a do pequeno Sartre. É ela que procuro todo dia, que às vezes sinto perto e às vezes longe. São os seres que têm essa paz de espírito, de em um mundo tão conectado ainda conseguirem ficar sozinhos no prazer do contato consigo mesmos, valorizando isso como algo divino, que mais invejo nesse mundo.

É a isso que persigo sem parar. Noite e dia.



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