Os porquês das leituras dos clássicos ou o mito da leitura
Por Lee
Pontes
Italo
Calvino diz que a única razão da leitura do clássico é que ler um clássico é
melhor que não ler um clássico. Mas o que é um clássico? Um clássico é aquele
ser fantasmagórico que nos sorri um riso enigmático. Para o ser comum, pode, tal
riso, ser de desdém. Porém, nunca o é. O riso, mesmo o não-riso de Monalisa, é
um convite. Um convite a quê? Não sabemos. Os clássicos são como os cantos das
sereias e o leitor é aquele que se amarra ao clássico para ouvir e não se
lançar no mundo-mar. A leitura é o posicionar da alma no meio do oceano, cujas
ondas vão nos guiando para mais mar e mais leitura.
Odisseu é o
primeiro leitor e, por que não, o primeiro escritor. Mas o que é lido? O cotidiano
é lido ou narrado por Odisseu, trata-se, assim, leitura-escritura. Queremos
dizer que o ato da leitura é um processo de escritura. Odisseu vivenciará muitos
acontecimentos, partira para a guerra e não fora aclamado herói pela força, mas
vencerá pela palavra. Ao ler o seu cotidiano, começará a forjar a sua própria
escrita. O canto do escritor é um canto sobre o canto. O canto da sereia é
incompreensivo para Odisseu, pelo simples fato de que a sereia canta um canto,
ou seja, sua preocupação é pelo ato de cantar. Daí a necessidade de amarrar-se
ao clássico, para não se perder pelo canto da sereia.
Odisseu,
diante do canto, só pode ouvir e o escritor, diante do cotidiano, só pode
escrever. Mas o escritor não escreve junto do acontecimento. Mas como surgiu em
Odisseu a necessidade da escritura? Em todos os instantes surgiu a necessidade.
Narramos como as sereias um canto sobre um canto, algo sempre incompreensivo
para quem ouve. É preciso se amarrar a algo para ouvir. Odisseu queria entender
aquele canto. Para entender o cotidiano, precisamos nos amarrar ao clássico. As
amarras são as leituras. A leitura é algo ativo. Precisamos de ação, preciso me
ligar, ficar preso a leitura. Sem as amarras, perco-me do canto e morro no mar.
Sem
leituras, o cotidiano perde-se e, por fim, nos perdemos no cotidiano. Para não
perder-se no cotidiano, que Odisseu reconta sua viagem e a Guerra de Troia.
Caso não o faça, ele deixará de ser o Rei de Ítaca, pai de Telêmaco e o esposo
da ardilosa Penélope. Odisseu percebe o intercruzar do cotidianos e os une em
seu narrar. Assim, a odisseia é uma multinarrativa, pois intercruzam os
multicotidianos. A rainha tece infinitamente sua tapeçaria e seu Odisseu narra
infinitamente sua narrativa nas infinitas leituras dos leitores.
Odisseu é
esse leitor que seduzido pelo canto se amarra ao clássico. A leitura, enquanto
ato, finda com a escrita, sua formalização. A odisseia não tem fim na leitura
ou nas leituras, nem mesmo seu fim se dá nas reescritas. Pensar num fim, é
tomar a leitura como algo passivo, em que o sujeito virá ser paciente de sua
própria ação. Ler é ser “um navegante numa noite de inverno” como propôs
Calvino. Voltamos a Odisseu e ao seu navegar. Assim, a leitura de um clássico é
navegar sobre o lido e o vivido.
Ler é
preciso, como é necessário navegar. Pessoa sustenta a proposta de navegação
pela leitura-escritura. É inegável a necessidade de ler. Voltemos à escrita de
Machado de Assim e encontraremos suas leituras: Shakespeare, Montaigne, Ésquilo
e outros. Sua Helena é uma leitora e a própria narrativa é uma leitura. Ler um
clássico é ler as leituras de um escritor. Todo ato de leitura é ler leituras,
ou seja, ao ler Machado de Assis lemos o que foi lido. Ficamos num círculo
eterno de leituras, como a Odisseia. Somos Odisseu em nossas eternas leituras.
Mergulhar na
leitura é mergulhar no Letes. Entretanto, queremos é exatamente o oposto.
Desejamos lembrar aquilo que foi sedimentado pelo cotidiano: o mistério da
vida. Odisseu deseja retornar ao seu cotidiano ao lado de sua Penélope e seu
filho Telêmaco. A leitura nós faz retornar a nós. Se Odisseu é o
leitor-escritor de sua própria leitura-escrita, Sherazade é a leitora-escritora
mais ardilosa que Odisseu. Se o grego deseja garantir seu passado, deseja ser
eterno pela palavra. A persa quer garantir o seu futuro, deseja vencer a morte
pela palavra.
Sherazade
sabe que a morte é certa, mas sabe que pode vencê-la pela palavra. Diferente de
Odisseu que se amarra ao clássico, a rainha persa se lança na fúria do rei-mar,
mas lança-se armada. Sherazade é o protótipo de escritor e, por que não, de
leitor. As infinitas noites com a rainha são eternas como as narrativas dentro
da Odisseia. A ardilosa narrativa se reinventa a cada noite, seu canto não é um
canto sobre o canto, mas um canto sobre o encanto do canto. Sherazade sabe que
o encanto do cotidiano reside no modo como ele é contado e, é aí, que reside
seu poder sobre o rei-mar.
Odisseu está
entregue a beleza do cotidiano e o reelabora em seu eterno contar. Sherazade
vive a beleza do cotidiano e o elabora a partir do seu desejo. Ela sabe que não
poderá voltar ao seu passado, mas deve garantir o seu futuro. É nesse ponto que
reside à diferença entre o grego e o persa, Odisseu é dominado pela leitura,
Sherazade é dominadora da leitura. Espera-se que Odisseu volte, isso fica
patente no desfazer/refazer do tapete de Penélope. Sherazade é a única que
confia em seu ardil. Ambos sabem e seduz pela linguagem e se fazem escritores.
Ler é melhor
que não ler. A leitura provoca um contentamento interior, um conhecimento de si
e guia ao caminhar com via ao eterno. Quando estiver sufocado pelo cotidiano,
leia poesia e, quando estiver sufocado por seus pensamentos, leia prosa. Apenas
continue lendo e, ao encontrar sua linguagem, vencerá o mundo pela palavra. No
ato de leitura, há o entrecruzar do passado com o futuro. Se agarrar ao
clássico é, como Sherazade, se agarrar a vida. A odisseia do cotidiano é feita
por leituras nas mil e uma noites infinitas.
* Lee Pontes é jornalista e linguista. Estuda o mal na literatura no
Grupo de Estudos Vertentes do Mal na Universidade Federal do Ceará. Atualmente,
é bolsista CNPQ em Linguística de Texto (UFC). A literatura surgiu na
infância como forma de castigo, virou um hábito e uma forma de vida. Toma a
escrita como forma de expressão superior, pois é a língua em sua potência
máxima. A graduação em jornalismo foi pela Universidade Estácio de Sá e o curso de Letras é na Universidade Federal do Ceará.
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