O regionalismo de Dalcídio Jurandir em Marajó
Por Rafael Kafka
Dalcídio Jurandir |
Semana
passada, fui à Fundação Tancredo Neves, conhecida popularmente em Belém como
CENTUR com uma amiga. Lá, após renovar um cadastro de empréstimo de livros que
não usava há pelo menos dois anos, decidi emprestar um livro em especial que me
chamou por demais a atenção. Não sem antes sofrer com aquela dor de todo leitor
que se preze o qual se depara com diversas situações em ter que escolher este
ou aquele título por conta da falta de dinheiro ou de tempo para ler ou comprar
livros. No meu caso, é a falta de tempo mesmo que mais me incomoda, pois em
tempos de cartão de crédito sempre dou um jeito de me endividar um pouco
somente para ter o prazer de ter livros e mais livros para ler em minha
prateleira.
Mas sem
tantos rodeios, o livro em questão é Marajó de Dalcídio Jurandir, autor
paraense cuja obra mais conheço. Para os que não sabem, ele escreveu um ciclo
de livros chamado Ciclo do Extremo Norte, de caráter fortemente existencial e
que se utiliza com maestria dos elementos da região amazônica (nos âmbitos
geográficos, etnológicos etc.) para revelar de forma singular essa região tão
pouco conhecida. Porém, sem fazer panfletismo.
Comecei a
ler Dalcídio em 2009 com Belém do Grão-Pará. Ali já me deparei com o herói
Alfredo em uma fase pré-adolescente, morando na capital paraense para poder
estudar e crescer na vida. No ano seguinte, li o primeiro volume do Ciclo, Chove
nos Campos de Cachoira, que até hoje considero não um romance, mas sim uma
mistura ímpar de romance com poema lírico. Aqui, Alfredo divide as atenções com
Eutanazio, um protagonista de caráter suicida que não sabe bem a que veio ao
mundo e se consome em sua própria revolta. Em 2011, li Primeira Manhã, livro no
qual Alfredo já está em fase ginasial e que narra sua primeira manhã em uma
escola.
O que
percebi em sua obra é algo visto por mim em todo grande escritor: não há a
fala ufanista em relação a um determinado especial e sua respectiva cultura. O
que há é o homem sendo retratado em toda a sua complexa indefinição. O espaço
ao redor é retratado como visto pelo povo daquela região e a maior preocupação
do escritor é mostrar como o homem se relaciona com o seu espaço. É por isso
que em uma obra de forte caráter realista, vemos o maravilhoso embrenhado em
diversas linhas e cenas, criando uma nova forma de realismo mágico que nada
deixa a desejar aos mestres Cortázar e García Márquez.
Capa da 1ª edição de Marajó publicada em 1947 pela José Olympio |
Decidido a
concluir a leitura do Ciclo, mesmo as obras sendo difíceis de achar, peguei a
edição lançada há alguns anos de Marajó pela editora da Universidade Federal do
Pará. Para minha surpresa, a leitura do romance pode ser feita de forma
independente, pois aqui há uma história paralela a de Alfredo, que marca
presença em todos os outros romances lidos por mim e que lerei ainda. O
protagonista aqui é Missunga que, ao contrário de Alfredo, já não é um menino,
e sim um homem na faixa dos vinte anos. Missunga é filho de um coronel de
sobrenome Coutinho e não sabe ao certo o que quer da vida. Seu pai, intendente
de Ponta de Pedras (pequena cidade do arquipélago do Marajó e deputado) é rico
fazendeiro de tez branca e olhar colonizador, representante perfeito do homem
branco que chega aos locais mais distantes querendo espalhar o seu sangue
“puro”.
No decorrer
do livro, percebemos Missunga como um jovem que não chega a desafiar a
autoridade paterna, mas ao mesmo tempo se esquiva dela de todas as formas
possíveis. Missunga, como o pai, é namorador, e ao mesmo tempo que vive a
lembrar de uma tal Mariana, está perdido de amores e desejo por duas caboclas:
Guita e Alaíde, sendo difícil precisar quem das duas é amante e realmente amada
por ele. Guita é sua amiga de infância e por isso o amor por ela tem algo mais
lírico e cândido. Já Alaíde é selvagem, de espírito indomável e isso parece
atiçar o desejo de nosso protagonista.
Enquanto o
pai de Missunga espera que ele saia de Ponta de Pedras para viver em algum
centro urbano relevante, Missunga espera fazer fortuna ali. Isso fica evidente
quando em uma saída do pai para uma viagem, ele cria uma fazenda própria em uma
espécie de sonho idílico de ajudar as pessoas que precisam de emprego ao mesmo
tempo em que se diverte com uma vida mais simples. Todavia, uma série de
problemas de infraestrutura acomete a fazenda que tem seu fim quando o coronel
volta e decide doar o terreno para uma companhia japonesa.
Missunga é
mais um herói sem identidade, um herói que não sabe ao certo o que quer. Por
conta disso, ele luta sem, convicção, de um modo aparentemente passivo, sendo
levado pela vida até um local confortável.
Apesar de
ser Missunga o foco maior das atenções na história, a mesma passa por uma série
de outros personagens, algo comparável a Cem anos de solidão, cujo número de
personagens e suas relações intricadas confundem o leitor não raras vezes. A
história assume um formato similar ao de crônicas para personagens como
capitão Lafaiete, tabelião de Ponta de Pedras cujas atitudes são suspeitas e
corruptas; coronel Coutinho com seu discurso de homem branco que subjuga negros
e mulheres simplesmente por ser homem e branco; Ciloca, o leproso que espalha
medo e revolta por onde anda etc. Tais pequenas crônicas são feitas com um
ritmo intenso e ao mesmo tempo cadenciado, fazendo da leitura de Marajó um
prazer intensificado pelo constante fluxo de consciência. É possível, em uma
hora, ler umas 50 páginas desse livro e se sentir invadido por ondas de poesia
pura.
O espaço é
o típico das regiões alagadas do Marajó: muitas árvores, pescadores, crianças
tomando banho em um rio, a vida ribeirinha em toda a sua magnitude e
profundidade. Todavia, em nenhum momento percebemos Dalcídio fazendo bandeira
sobre o Estado do Pará. Como outro grande gênio de nossa literatura, João
Guimarães Rosa, fez muito bem em Manuelzão e Miguilim (única obra dele lida por
mim até agora) o espaço é somente um motivo a mais dentro da história. O que
esses autores querem nos mostrar não é a região em si, mas a complexidade da
vida humana dentro daqueles contextos. Estamos diante de histórias que poderiam
ser vividas por qualquer ser humano, não importa se eles são moradores do
sertão, das ilhas fluviais amazônicas ou de um grande centro urbano. É por isso
que podemos colocar sem dúvida alguma Dalcídio dentro de um rol de escritores
consagrados e que estão canonizados como os maiores de todos os tempos.
Um último
ponto importante a ser ressaltado é o vocabulário utilizado pelo autor, capaz
de reter as maiores minúcias do peculiar léxico paraense. Vemos aqui nomes de
frutas exóticas, expressões de raiva, carinho, etc; além de outras
particularidades do português falado em nosso Estado, o que torna a obra
difícil de ser traduzida, pois exigirá sem dúvida alguma muita habilidade do
tradutor-autor.
Em um
aspecto mais ontológico, a leitura me fez pensar em um outro texto lido por mim
recentemente: “A Infância de um Chefe”, uma novela inclusa na coletânea de
contos de Jean-Paul Sartre chamada O Muro. Aqui temos a história de Lucien
Fleurier, um jovem que sente dentro de si uma espécie de bruma, figura
metafórica que me fez pensar demais em Clarice Lispector e certos autores
simbolistas por representar nossa indefinição ontológica.
A novela
possui cerca de 110 páginas e mostra o processo de crescimento de Lucien, que
experimenta uma série de situações, inclusive a homossexualidade, para no fim
se tornar um “homem”. O homem aqui, no caso, é o homem burguês, heterossexual,
branco, dono de uma fábrica, rico e que subjuga os outros simplesmente por ser
o que é. Se coronel Coutinho tem um racismo introjetado por ser branco e subjuga
os caboclos sem sentir dó, o pai de Fleurier e seus amigos têm o anti-semitismo
em si e Lucien, para se integrar ao grupo, acaba assumindo essa resposta como
sua resposta, como sua essência.
Nesse
sentido, a novela sartreana aborda justamente o aspecto filosófico da
individualidade que se mata para eliminar de si o sentimento de ser estrangeiro
em sua própria terra, de se sentir angustiado, de se sentir livre. O ser se
torna as respostas que seu grupo define como certas, reproduz em sua medula os
valores sociais e morais cujo fim é eliminar de si dúvidas e desconforto no ato
de viver.
Missunga
nos é mostrado já adulto, porém saudoso de sua falecida mãe, Branca,
respeitadora dos caboclos e das pessoas mais pobres. Missunga observa a
infância como um recanto de felicidade perdido para sempre e por isso nós nos
deparamos com ele despreparado para ser um “homem”. Assim como Lucien, ele
experimenta uma série de situações, principalmente de amor heterossexual, em
sua preparação para ser homem e ficamos na expectativa de saber se ele irá,
assim como o personagem criado de forma magistral por Jean-Paul Sartre,
entregar-se a um código de valores para viver uma vida calma e sem angústia,
isso, claro, fingindo não haver diferença no mundo.
Vemos na
leitura comparada das obras que os temas são similares. Não irei aqui afirmar
que Dalcídio leu Sartre, apesar de achar isso bem possível. Porém, os textos
têm uma certa similaridade no tocante ao mostrar como tornar-se “homem” é
aderir a uma essência masculina, a um conjunto de valores morais, vistos como
leis absolutas por muitos, mas na verdade sendo apenas uma única forma de ver o
mundo em sua complexidade, que, por uma série de fatores, tornou-se a Forma de
ver o mundo.
Missunga e
Fleurier são seres humanos que precisam abrir mãos de sua individualidade, da
“bruma” que os invade, para serem pessoas felizes, aceitas e sem angústia.
Ainda me faltam várias páginas para terminar de ler Marajó e fico bem curioso
para ver como Dalcídio irá concluir esse processo de formação, que Sartre
terminou de forma bem interessante. Mas, não devemos esquecer, o espaço em que
as narrativas se passam: a novela, na França da Primeira Guerra Mundial; o
romance na ilha do Marajó em algum momento ali pela década de 20. O homem é
influenciado pelo seu espaço, pois relaciona-se com ele, logo o espaço
amazônica com suas águas, matas e lendas é uma presença que transforma o relato
de Dalcídio riquíssimo e mais vivo do que o de Sartre, que representa a fixidez
de um ambiente burguês urbano.
Marajó é um
livro cuja leitura abre nossa mente para a imensa complexidade do ser humano.
Não há aqui, como certos leitores falam, uma defesa ufanista da cultura
paraense e de seus valores. Há um relato que se utiliza com maestria do espaço
do Estado do Pará para criar uma série de situações que nos fazem pensar como o
maravilhoso está sempre imerso em nossa vida. Acreditar nele, é outra história.
O que nos resta, então, é centrar nossas atenções no desenrolar da vida humana,
absurda e maravilhosa por si só. Fato este transformador por si só da leitura
em algo incrível, prazeroso e descobridor.
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