O primeiro terço ou a doce loucura de Neal Cassady-Dean Moriarty
Por Rafael Kafka
Neal Cassady e Jack Kerouac |
Há um fato
bem curioso na literatura: muitos escritores que escreveram pouquíssimas obras
são mais influentes do que outros que escreveram calhamaços e mais calhamaços.
Claro que muitos mestres da literatura têm uma quantidade de tijolos produzidos
por suas mãos e mentes bastante assustadora pelo seu volume. Vale lembrar por
exemplo, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Dostoiévski e outros mais. Há
também aqueles que causaram impacto escrevendo livros em grande quantidade, mas
sem tantas páginas. Cito, agora, José Saramago e Machado de Assis, cuja média
de páginas de seus livros beirava os trezentos e os duzentos, respectivamente.
Isso, claro, baseado no que li de ambos os autores, o que me leva a pedir
perdão caso esteja aqui cometendo qualquer tipo de erro estatístico ao meu
leitor.
Mas como eu
dizia acima, há aqueles escritores que escreveram relativamente pouco e se
consagraram como mitos da literatura. São estes seres que se tornaram célebres
com pequenas quantidades de linhas escritas, se compararmos aos autores citados
acima, porém obtendo uma importância histórica e literária incomensurável. Para
tal tipo de escritor, vêm-me a cabeça nomes como Kafka, que vivo publicou apenas
curtas novelas com o gigante texto em poder literário como A metamorfose; Arthur
Rimbaud, considerado um dos mestres do desregramento de sentidos com títulos
curtos como Uma estadia no inferno (o qual li de uma só toada no Natal [!] de
2008); Allen Ginsberg que com seu Uivo e outros poemas é considerado um dos poetas mais relevantes do século XX, dentre outros.
Falando em
Ginsberg, quase todos os beats escreveram relativamente pouco. Porém colocaram
em seus textos uma carga de força literária vista em raríssimos momentos da
história humana. As exceções de escritores que escreveram muito em um ritmo
similar ao de Saramago e Machado foram Jack Kerouac (o buda da geração) e
Charles Bukowski (uma espécie de membro honorário deste movimento tão
importante para a contracultura ocidental). Há um beat em especial cuja figura
muito me causou impacto recentemente e é dele que falarei no texto de hoje,
pois se encaixa em uma categoria análoga a Kafka, Rimbaud e outros aqui
citados, mas com um ponto bem interessante: sua forma de vida fundou, meio que
sem querer, uma estética rica em significado e beleza.
Uma das edições brasileiras de O primeiro terço; aqui a da L&PM Editores |
Quem leu On the road, deve com certeza se lembrar de Dean Moriarty, um sujeito cheio de um
espírito frenético, com um passado repleto de pequenos crimes e muitas andanças
pelos Estados Unidos e que era uma lenda viva para o protagonista
Sal Paradise. Pois bem, na vida real Dean é Neal Cassady e Sal, Jack Kerouac.
Este último, tornou-se um caso ainda meio raro de escritor que conseguiu fama e
dinheiro com a vida literária, o que não o salvou de ter um final de vida
complicado, frustrante e perturbador, como visto em Big Sur, um ousado romance
autobiográfico escrito em um tom bastante psicótico.
Por outro
lado, Neal Cassady teve publicado apenas um pequeno livro: O primeiro terço. E pior: inacabado. O livro simplesmente para em algum ponto lá pela
página cento e sessenta no meio de uma bronca levada por Neal de um de seus
meio irmãos mais velhos por ter tido uma experiência sexual adolescente com uma
criança das redondezas de onde morava em Denver. O resto do livro, são algumas
cartas e fragmentos de textos largados por aí, com direito a um esboço do
primeiro encontro com Kerouac e Ginsberg.
Quando se
lê a obra máxima de Jack, percebemos que Sal é profundamente tocado por Dean e
seu espírito aventureiro, saindo então em uma série de viagens ao redor do país
em companhia do alter ego de Cassady ou sozinho mesmo. É partir da experiência
das viagens que Kerouac cria uma obra extremamente poderosa, pois revela o
outro lado do sonho americano ao mesmo tempo em que prega de forma poética uma
libertação em todos os sentidos do espírito humano por meio da poesia.
Os beats
são parte de um movimento pós-moderno bastante revelador do mundo atual e da
falta de perspectiva de jovens, que sem mais nada esperar da vida em
definitivo, saem pelo mundo para construir suas próprias verdades. Podemos
encontrar ecos de seu pensamento no existencialismo francês, que em um ambiente
mais aburguesado e acadêmico também defendeu as rupturas com verdades prontas e
essencialistas. Também é impossível não comparar os beats com certos escritores
brasileiros, cujo ímpeto renovador na nossa forma de produzir arte até hoje
influenciam demais a produção de formas de fazer poético; que não se limitam a
jogos fechados de palavras e a uma visão academicista do universo. Um exemplo
claro disso é Mário de Andrade, que ao criar e destruir em um mesmo texto o
desvairismo acabou dando a tônica que seria descrita por Humberto Gessinger em
“Infinita Highway” do sentimento de descoberta do mundo como algo em aberto,
sem o objetivo de chegar a algum lugar em definitivo, mas simplesmente nunca
estar parado, morto, estanque.
Na raiz de
tudo isso, de toda uma forma de pensamento que influenciaria os mais
diversificados movimentos contraculturais de nossos tempos, temos a imagem de
um jovem marginal que era filho de um alcoólatra, fã de andanças pelo país e
pela cidade, morador de um prédio miserável e que se alimentava graças à ação
de ações de caridade ligadas à igreja; de um rapaz que morreria nem tão velho
assim de overdose e que escreveria em vida apenas o primeiro dos terços de sua
vida: Neal Cassady.
Apesar de
curto e sem um final, o livro de Cassady é fundamental para se entender a
importância de sua figura para a geração beat. Desde pequeno, com uma vida
repleta de pobreza, Neal teve de aprender a se virar para ser uma criança com
prazeres e diversão. Sua grande paixão era flanar pela cidade de Denver,
explorando os mais variados recantos daquela selva de pedra, acompanhado ou não
do pai. O texto é muito rico e mesmo se utilizando de um tom mais formal do que
as obras de Kerouac, por exemplo, consegue ter aquele ritmo oralizado dos bons
poemas beat feitos por Ferlinghetti ou Ginsberg.
Cassady procura
utilizar-se de um discurso rico e detalhista, que visa à exploração constante
dos mais variados estados de alma do protagonista. Por conta disso, sentimos
que a história pouco evolui nas pouco mais de cento e sessenta páginas que compõem o livro, ainda assim nos sendo dada uma sensação profunda de leitura
forte e reveladora. Na verdade, percebe-se até mesmo no posfácio do livro que
Cassady não é sim um escritor, sendo levado a isso mais pela insistência dos
amigos, principalmente Kerouac. Por sinal, vale ressaltar que a geração beat
era basicamente isso: amigos que amavam viagens psicotrópicas, intelectuais,
existenciais e geográficas, desejosos de levarem os outros em sua viagem juntos
para uma imensa festa que transcendesse o vazio de uma existência sem sentido.
O homem que
inspirou a criação de Moriarty e de toda a comoção vinda depois era em sua vida
o espírito inquieto pregado pelos beats como uma forma de fuga do pesadelo
refrigerado da sociedade capitalista ocidental. Por isso mesmo, todo o seu
espírito se metamorfoseou em um amor apaixonado de Jack que criaria em seus
livros uma verdadeira e gigantesca ode aos espíritos livres do mundo. Cassady,
então, pode ser considerado uma mistura de Kafka com Rimbaud, mesmo eu não
podendo afirmar se ele leu os dois belíssimos autores: teve o espírito pioneiro
do primeiro, que “criou sem querer” aquilo hoje conhecido como realismo mágico,
e a rebeldia do segundo, que tão desejoso de viver a vida, não se importou em
largar a literatura com apenas vinte anos de idade.
Mesmo
escrevendo uma simples obra inacabada, publicada de forma póstuma para
aprofundar a aura mágica de seu feito, Cassady pode ser considerado o pai da
literatura beat por ter dado a Kerouac a luz sobre o que escrever: sobre o nada
da vida que a tudo permite se entregar.
Um último
fato interessante sobre o livro é o seu prólogo: ele é escrito em terceira
pessoa por Neal para falar de seu pai, também chamado Neal. De forma objetiva e
profunda, o autor recupera os laços familiares e fraternos de seu pai, que
assim como o nosso querido Moriarty era um grande andarilho capaz de se virar
em contextos extremamente cruéis, tendo como fraqueza o álcool, vício que o
faria ser humilhado de todas as formas possíveis.
Ao ler esse
prólogo, lembrei logo de duas outras obras autobiográficas muito queridas por
mim, e já citadas, creio, em outros textos meus: As palavras e Balanço final,
do casal Sartre e Simone, respectivamente. No começo dos dois, temos uma
espécie de prólogo que busca refletir acerca dos acasos existentes em nossas
vidas, os quais nos levam ao ponto no qual estamos de nossas vidas.
O prólogo
de Cassady, assim como os citados acima, é uma tentativa de mostrar o quão
complexa e absurda é a vida, indeterminada e cheia de possibilidades. A existência
se mostra, então, como algo opaco, impreciso, difícil de ser captado, mesmo
estando aqui: sendo vivida em nossa carne, como diria Simone de Beauvoir.
O livro de
Cassady já se tornaria mágico por si só por conta do poder possuído pelo autor
de recuperar o tempo perdido em toda a sua densidade, mesmo que apenas no plano
literário. Todavia, como ferramenta para se entender a complexidade do ato de
viver e para se compreender a importância capital de uma figura ímpar do
movimento beat, a obra se torna ainda mais indispensável para todos os leitores
que têm em seu espírito aquele senso arqueológico o qual procura entender nas
mais profundas microvilosidades as forças criativas que se agrupam em torno de
um tema em comum em determinada época da escola.
E é aí que
ficamos mais conscientes do poder beat: não havia ali tema algum exceto a
própria vida e o seu incessante movimento existencial rumo ao nada de ser do
futuro. Havia diante de tais escritores o tudo do poder viver o nada de uma
existência pré-determinada. Cassady, em suas andanças por Denver, sem querer,
estava colaborando para uma visão multilateral da realidade e para a renovação
do que se entende hoje como o ser humano: uma criatura sem definição, tendo
como a essência de seu eu ser aquilo que vê e o seu fazer. Nada mais. Nenhuma
resposta pronta.
Isso,
claro, para aqueles que têm a crença na dignidade humana: os espíritos livres.
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