O inventário das coisas ausentes, de Carola Saavedra
Embora surjam nomes aos borbotões, conta-se nos dedos os que
possivelmente renovarão a cena da literatura brasileira. Falo, evidentemente,
dos escritores contemporâneos – grande parte ainda presa num certo narcisismo
próprio do artista que é logo de cara, por alguma razão, ovacionado pelos meios
onde circulam os tais da elite artística do país. Elite que, diga-se, tem sido
o desastre dos tempos insossos que padecemos.
Cá, não sei muito de Carola Saavedra, se ela poderia figurar
entre esses abençoados. Pouco leio, aliás, nos meios mais convenientes, sobre a
escritora. E, se a Companhia das Letras tem abrigado parte da nova turma de
narcisos, ao menos – é o que parece – Carola escapa. Constrói uma obra e
aguarda silenciosamente um parecer sobre ela. O inventário das coisas ausentes é o quarto título depois de Toda terça, Flores azuis (este foi o que mais li críticas a respeito), Paisagem
com dromedário. Não poderei estabelecer relações com estes títulos, entretanto,
porque nesse “cá, não sei muito de Carola Saavedra” incluiu meu não contato com
essas obras. E a necessidade pela leitura desse romance talvez tenha surgido
mais através de uma intuição barata e certa atração por este sobrenome alinhado
ao sobrenome do grande Miguel de Cervantes.
Se minha intuição nunca tiver feito um acerto – sim, porque
me parece um impressionismo muito barato, não, guiar-se pela intuição – não falhou
desta vez. Encontrei-me num texto inventivo, pouco comum para a cena literária
brasileira e que aponta, se a escritora mantiver-se no fio prumo do exercício
linguístico, ser um nome considerável muito em breve. Mesmo eu lendo pouco esta cena, o que me
agradou logo em Carola – e isto pode até ser novamente uma impressão barata – é
o zelo estético com a forma narrativa e um exercício interessado na renovação da
linguagem literária.
O inventário das
coisas ausentes é, de fato, não um romance, mas um protorromance, um
esqueleto narrativo, ou o que o título propõe ao leitor, um inventário. Se só faz inventários de coisas,
objetos de valia, bens, recursos, Carola, ao modo poético que logo me lembra
Manoel de Barros e sua inutilidade da poesia, busca dizer a possibilidade de
inventariar o não-palpável – os sentimentos, os sentidos, as histórias
pessoais, a memória, os amores, enfim, toda possível sustança de uma vida. Transforma
tudo isso numa possibilidade de ficção, na certeza de que talvez não passemos
disso.
É esta uma coleção de narrativas possivelmente vividas, possivelmente
por viver. Primeiro, de Nina, personagem de quem se ocupa o também possível narrador;
depois esse possível narrador, personagem de si. Quem perscruta, depois da
partida de Nina, uma caixa de diários deixados por ela e uma caixa de diários invisíveis
de sua própria vida, a complexa formação pessoal, a difícil relação com a
figura paterna, e sempre a sua incapacidade de vencer tudo, até a barreira da
própria escrita. De modo que, O
inventário das coisas ausentes é uma história por dizer de duas vidas – ora
narrada em impressões a partir dos
catorze diários deixados por Nina e a possibilidade de tornar isso um romance (a
primeira parte intitula-se “Caderno de anotações”); ora narrada em semicertezas
(a segunda parte, “Ficção”) sobre o envolvimento amoroso com a autora dos
diários, o distanciamento entre os dois, o reencontro. A vida de Nina, aliás, é
subterfúgio ou gatilho para uma compreensão da própria vida do narrador.
Nisso, o livro se desdobra como um cordão em que se agrupam
fragmentos propositalmente desarticulados como se pedisse ao leitor um mergulho
nas situações a ponto de cerzir uma narrativa, dotá-la de rumo e poder, então,
dizer algum sentido dela – sim, porque a queixa de fracassado, ditada pelo pai
do narrador, é um entrave proposital sobre a impossibilidade de contar uma
história. Todo esse efeito experimental, digo, ao passo que aponta para a crise
há muito instaurada sobre o gesto narrativo é uma atitude de reconhecimento acerca
potencialidade do leitor no exercício de elaboração da narrativa ou, ao menos,
uma cobrança sobre sua atuação, ou ainda certa preocupação de quem não tem o
romance apenas como via de entretenimento. O
inventário das coisas ausentes é, assim, um livro por vir, mesmo havendo, na segunda parte, o fio de um enredo.
Gosto de pensar que Carola
tenha colocado em questão ainda certa tautologia da escrita: digo isso pensando
nas narrativas paralelas que vez ou outra assoma a primeira parte do livro. Nota-se
que, boa parte delas se aproxima da narrativa principal possível – a do envolvimento
de Nina com o narrador, sua convivência por longo tempo e o desaparecimento dela
por catorze anos até seu retorno como se nada tivesse acontecido. Todas são histórias
querendo ser a melhor maneira de dizer essa principal, seja porque os
acontecimentos e as personagens, por diferentes que sejam estão em relação com
essas ações principais. E não tem isso uma relação direta com a persistência do
escritor pelo grande romance, aquele que, de fato, o dignifica ter escrito?
A brevidade de O
inventário não é uma simplificação da narrativa. Carola engendra outros fios que dão ao texto uma densidade muito própria,
como se aspirasse ao lugar do grande romance: o que se perde em dimensão se
ganha em complexidade. Mesmo não sendo uma maneira prolixa de narrar – que tudo
aí flui e tem mesmo o tino dos textos lineares até – mostra-se uma escritora inventiva.
Eu tenho sempre comigo que, se não fosse certa submissão (nome que uso querendo
designar compromisso) que os escritores parecem está envolvidos com as editoras
dado essa coisa do contratual (afinal é preciso ganhar alguns sustento)
narrativas como esta de Carola poderiam, num
trabalho maior de reflexão, tomar a proa da ficção no Brasil. Enquanto isso,
resta esperar pelos próximos títulos; pode ser, o texto ora publicado
metaforiza essa busca, que num futuro possamos voltar aqui para dizer enfim alcançamos.
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