O Bruxo de Casa Forte: Machado no esplendor da sua complexidade
Por Alfredo Monte
Houve uma grita geral nos últimos dias por conta do projeto (financiado com dinheiro público)
de “descomplicar Machado de Assis”, alterando seu vocabulário (a responsável, Patricia
Secco, diz entender “porque os jovens não gostam dele”: “seus livros têm cinco
ou seis palavras que não entendem [sic] por frase. As construções são muito
longas”), e cujo primeiro título sairá em breve (O Alienista). De minha parte, só
posso evocar o jovem leitor que fui: quando o texto me interessava, não eram
palavras que eu não entendia que brecariam a leitura, mesmo sem dicionário à
mão. Ia em frente, simplesmente, e isso não me fez mal nenhum, quero crer¹.
O contraponto mais
adequado a essa visão míope do que seria “adequado” para jovens ou neoleitores
é Machado devolvido a todo o esplendor de sua complexidade, e no melhor da sua
obra (na contramão da preocupante hipervalorização da sua produção secundária —
as crônicas, em especial), efeito final do mergulho (são quase 400 páginas) no
maravilhoso Romance com pessoas, de
José Luiz Passos.
A ideia-chave
contida no título, simples e fecunda, de uma deliberada “confusão” entre
personagem e pessoa, indica o maior feito de Machado enquanto fabulista: a
criação de caracteres ficcionais com uma rica e ampla imaginação moral, a qual interfere na forma da narração (um ponto
crucial); o que explica — independentemente de todas as outras interpretações
que possam ser feitas — por que nos debruçamos inesgotavelmente nas tramas das
suas “existências”. Tal escrutínio das intrincadas motivações pessoais (e suas
máscaras sociais) renova e aprofunda uma literatura até então rasa:
“O romantismo havia criado um corpo para o
Brasil. Machado lhe daria uma consciência. Tal consciência é, desde cedo,
marcada pela faculdade de dissimular...”
A originalidade (e
o decorrente charme) do texto de Passos — e não por acaso ele foi capaz de
escrever um dos mais brilhantes romances da atualidade (O Sonâmbulo Amador, 2012) — é que seu argumento desdobra-se,
matiza-se, contorce-se, dissimula-se em várias sendas. A argúcia de romancista
ajuda o ensaísta a manter a capilaridade dessa meada toda em seus volteios e
enrodilhamentos: nas cinco partes em que Romance
com Pessoas se divide, temos capítulos “históricos”, capítulos “teóricos” e
capítulos de exercício crítico aplicado de uma forma modelar. Assim, o leitor
deve ficar muito atento para os liames, o “enredo” oculto permeando os capítulos
com nomes de personagens ou os capítulos com nomes de autores, por exemplo,
para montar o quebra-cabeça aos poucos e com deleite (pois estamos longe das
formulações áridas e da especialização hermética habituais nesse tipo de
empreitada).
Um fio da meada
plausível é a pessoa-Machado, o jovem autor dos anos 1850, a escrever peças
(fracas) para o teatro, seguindo atentamente as discussões em voga no meio.
Entre elas, as postulações cênicas opostas que guiavam representações de
Shakespeare no país (uma, moldando um bardo “moderado” pelo gosto classicista;
outra, de forte teor romântico, ressaltando suas arestas, seus perturbadores
pontilhismos de sombra e luz); e, dado não menos importante, a criação de um
teatro realista contemporâneo, com forte viés moralizante, para entreter e educar
a florescente classe média de espectadores.
Ao chegar ao
romance (em 1872, com Ressurreição),
Machado já tinha a bagagem de publicações em uma ampla gama de gêneros (além do
teatro, crônicas, poemas, contos) e, como uma semente para seu gênio, essa experiência
com os dilemas da representação dramatúrgica. E o teatro (sem contar a presença
shakespeariana) seria essencial para a composição dos seus nove romances, e
permitiria que ele superasse as limitações do gênero no Brasil, na passagem do
romantismo para o realismo-naturalismo.
Ainda atendo-se
mais ao comportamento de seus protagonistas (na maioria, jovens mulheres em
situação social ambígua e desfavorecida) em suas primeiras realizações (até Iaiá Garcia, de 1878), todavia
aprofundando-o a cada livro, de forma que tais personagens já são “pessoas” na
acepção de Passos (como ele demonstra com suas finas análises e comparações),
na segunda fase, o uso de um narrador em primeira pessoa (caso de Brás Cubas e
Bentinho — e como é interessante essa mudança de modulação, do feminino para o
masculino!3) permitirá que os enlaces das narrativas com a “teatralidade” do
mundo social e mesmo íntimo, e o uso de motes shakespearianos impregnem o
ficcional enquanto jogo de disfarces, de manipulações e, no limite, de dúvidas
e remoeres angustiantes e insolúveis, abeirando-se do trágico (barrado pela
ironia). Avançando em sua maturidade literária, Machado estará pari passu com o
Henry James que escreveu as seguintes palavras no prefácio a uma de suas mais
desafiadoras criações (de 1904, ano de Esaú
e Jacó):
“Vemos bem poucas
pessoas em A taça de ouro, mas o
esquema da narrativa, em compensação, determina que devemos na realidade
observá-las até o limite permitido por uma forma literária coerente”.
Machado de Assis
ficou conhecido como Bruxo do Cosme Velho. Eu já desconfiara, lendo O Sonâmbulo Amador, que boa parte da sua
cozinha de feitiçaria fora herdada por José Luiz Passos, o Bruxo de Casa Forte4. Agora já não tenho mais dúvidas: só assim se
explica o quebranto de um texto que foi lançado inicialmente numa edição
acadêmica5 (e já destoava dessa camisa-de-força) e que, na reedição
requintada da Alfaguara, enriquecido com as estratégias da boa ficção, torna
tão vivas as “pessoas” machadianas quanto a pessoa que as criou.
Notas:
¹ E com a maior honestidade posso afirmar que a minha primeira
experiência de leitura do próprio O Alienista, lá pelos meus catorze anos, foi
assim mesmo: não entendia muita coisa (as analogias políticas, por exemplo),
mesmo assim achei o texto divertido e “saquei de cara”, por assim dizer, a
ironia e o ridículo a que submetia os personagens.
² daí o subtítulo do livro: A Imaginação em Machado de Assis
³ “(...) com
exceção de Quincas Borba, seus
protagonistas agora são autores das próprias histórias; e os romances se
dedicam a sujeitos ruinosos, obcecados pela restauração. Narradores de si,
mesclam passado e presente e insinuam versões de seus desenvolvimentos morais
que invariavelmente acabam implicando o outro. A narração torna-se mais
idiossincrática, e a história pessoal, não as ações presentes, é apresentada
como meio de invocar o passado e reparar o eu. O que as primeiras heroínas
desejavam esquecer passa a ser, precisamente, o único objeto de Brás, Bento e,
de modo diverso, também do conselheiro Aires: a nostalgia desloca qualquer
sentido de futuro, a questão de como viver a vida vem á tona e assume a
proeminência, mesmo a despeito das convicções do narrador. Os romances
machadianos da retidão feminina e do caráter moral cedem espaço às narrativas
de protagonistas masculinos questionáveis em seus padrões ambivalentes de
percepção ética”. Talvez por causa disso, numa das belas formulações do
ensaísta pernambucano, tais protagonistas são “heróis da imaginação ululante”.
4 Bairro do Recife.
5 Cf. Machado de Assis: romance com pessoas
(Edusp/Nankin, 2007). Publiquei aqui mesmo neste espaço um longo comentário
sobre essa edição. Talvez não seja
ocioso ressaltar que a nova versão, apesar de seguir a mesma linha de
argumentação e boa parte do texto original, é muito diferente de uma forma
muito sutil e, no entanto, decisiva: na versão de 2007, Passos precisou até
apresentar um roteiro sumário das seções que compunham seu livro porque ele
seguia a linha de ensaísmo mais livre e anticonvencional da tradição
anglo-saxônica. Na forma atual, ele abdicou dessa excêntrica composição (e não
se tome aqui o adjetivo num sentido pejorativo ou desvalorizante, muito pelo
contrário), adotando estratégias muito mais aglutinadoras, com um resultado
mais orgânico, sem se tornar pesado.
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