Com as flores do salgueiro, de Albano Martins
Por Pedro Belo Clara
Albano Martins |
Das
vastíssimas obras que ostentam o cunho deste autor nascido em 1930 no concelho
do Fundão, Beira-Baixa, escolhe-se para motivo desta coluna uma que, de tão
breve, arrisca-se a passar despercebida ao olhar do leitor mais incauto.
Contudo, pela sua peculiaridade, importa não a condenar ao olvido. Ainda para
mais sabendo que a edição da mesma não se realizou através dos meios oferecidos
pelas editoras mais experimentadas, ficando essa – a edição – ao cargo da
Universidade Fernando Pessoa, no Porto, que em 1995 a deu à estampa – o que
desde logo, com os devidos respeitos prestados, tende a limitar a global
divulgação de um trabalho, seja ele poético ou não.
A
génese suprema que sustenta a singularidade do trabalho prende-se com o facto
de o mesmo se tratar de uma colecção de haikus, estilo poético de raiz oriental
que em passadas ocasiões foi aqui abordado. Como se poderá depreender, a
prática do haiku é algo incomum nos autores portugueses. A tal raridade instigará,
é certo, a curiosidade de todos os apreciadores desse singular estilo de
escrita, mas importa fomentar a devida promoção de modo a abranger um número
maior de leitores. Na verdade, poucos poderão possuir conhecimento acerca da
existência do livro. Devido à escassez da prática entre nós, portugueses, a
divulgação justificar-se-á. Mesmo sabendo que Albano Martins, distinto
professor na universidade supra-citada, obteve louvores por outros trabalhos
que não este (recorde-se, por exemplo, Uma Colina para os Lábios, detentor do
Prémio Eça de Queiroz em 1993), a originalidade de Com as flores do salgueiro,
fundada em sua forma e estilo, merece uma leitura mais atenta. Naturalmente, o
livro constitui uma homenagem a Bashô, o grande mestre do haiku, e detém, para
cada poema, uma fiel tradução simultânea: para o japonês e para o inglês.
Importa
esclarecer que, devido ao seu rigor métrico, o haiku original é de dificílima
adaptação aos idiomas ocidentais. Resta, portanto, se for fidelidade à raiz do
trabalho que um autor pretender, preservar os outros parâmetros que o
caracterizam. Dentre eles: o uso de somente três versos, o recurso a motivos e
a elementos da natureza circundante e o sublinhar do carácter visual da poesia.
Caso contrário, essa nova forma de haiku corre sérios riscos de se transmutar num
mero terceto. De qualquer forma, tais parâmetros são pelo poeta totalmente
respeitados.
Longa
é a incursão de Albano Martins pelas letras lusitanas... De traduções diversas
a organizações editoriais, o autor foi igualmente fundador e colaborador de
algumas publicações de destaque, nomeadamente da Nova Renascença. Em parte por
tais motivos, as suas intenções só poderiam, uma vez mais, ser fielmente
cumpridas. A obra em questão é, por isso, um livro que, cativando o gosto do
leitor para o género em questão, tão específico que quase chega a assumir-se
elitista, não defrauda as expectativas daquele que o amparar em suas mãos, por
mais diminutos que sejam os padrões de exigência estipulados.
Mas
foquemo-nos um pouco mais no autor. No dizer, a nosso ver correcto, de Salvato
Trigo, prefaciador deste livro e reitor da universidade que o editou, Albano
Martins é um daqueles poetas assumidamente "pós-presencistas e
pós-neorrealistas que apostam decisivamente na economia verbal". Idêntica
conclusão parece ter retirado o poeta António Ramos Rosa, recentemente
falecido, que sobre os filhos desta poesia assim se expressou: "sóbrios,
breves, mas rutilantes, coloridos, vibrantes" (Grande Enciclopédia Universal,
volume XIII). Ora, tais características, ramagens de um estilo muito próprio
que de modo seguro é praticado, encontram-se perfeitamente plasmadas nos mais
de quarenta haikus apresentados, ainda que as origens clássicas do autor não se
tenham diluído por completo – notar-se-á, por exemplo, o uso meticuloso da
pontuação e o constante cuidado no modo como o ritmo é, em cada trabalho,
impresso. Em todo o caso, acrescente-se, o gosto pela depuração ou, se preferir
o leitor, pela condensação da palavra, da imagem ou do verso, só se revela um
formidável aliado no exercício deste género tão exigente, pelo que o recair das
poéticas intenções ou preferências do autor na especificidade do estilo em
causa não poderá constituir motivo de franca estranheza.
Ao
longo das páginas deste livro é-nos proposta uma viagem por um mundo de cores,
traços, sabores e aromas tão distintos quanto possíveis. Um "caos" nitidamente
harmonioso quando as partes, embora distintas, se conjugam entre si e fazem
emergir um todo até então oculto ou levemente subentendido. Desde o enfoque em
pormenores de grande beleza natural, capazes de abrilhantar a visão do
peregrino que sobre eles se debruça ("Nem sempre a neve/ cai do céu: às vezes,/ explode numa flor"), aos habituais exercícios de “poetização do real apreendido”
("Um mar azul/ pintou de branco/ o voo das gaivotas"), encontra-se também um
espaço para a tecedura de motivos relacionados com o ofício em causa: "Borrão
azul/ na brancura da página:/ o poema". Como por este último exemplo se
compreenderá, é de igual modo curiosa a forma da poesia escrita ser
tendencialmente preterida pela poesia visionada ou sentida (o poema, note-se, é
um simples "borrão azul"), se bem que sem a primeira o registo da mesma jamais
seria possível. Em todo o caso, a aparente simplicidade dos haikus propostos
pode auxiliar na ocultação da profundidade que pela imagem poética é sugerida.
A sua absorção pode assim carecer, se não mesmo merecer, uma leitura nunca
célere ou superficial.
Com
segura afirmação concluir-se-á que num aglomerado poético tão leve, limpo e de
forte impacto visual, a compreensão ou a unidade que neles amiúde se tenta
descortinar são naturalmente relegadas para segundo plano. Cada poema vale por
si e alimenta-se de si próprio, sendo um orgulhoso produto de serena
contemplação. Na verdade, persiste um constante apelo às sensações em
contrastes que se esforçam por assumir os contornos de uma sinestesia tecida
com enorme perícia.
Os
haikus deste livro são janelas abertas a um mundo prenhe de momentos que no
olhar de Albano Martins, em algum tempo e lugar, permaneceram impressos e que,
com gentileza poética, são agora partilhados por intermédio de versos
devidamente amadurecidos. Poderá parecer exíguo, ou incompleto até, o retrato
que da sua leitura sobejar, mas aquele que o afirma certamente estará a
subestimar as profundas virtudes que irrompem das mais simples coisas. Não nos
equivoquemos: este pequeno livro é um hino que louva a beleza do mais frugal
elemento. E só isso lhe parece bastar.
Quando uma abelha
se enamora,
nasce uma flor.
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