As ilustrações de Carybé para Macunaíma, de Mário de Andrade
Por Pedro Fernandes
Macunaíma é uma
obra-síntese da virada porque passou a literatura brasileira. Única naquela ocasião
por redesenhar as fronteiras da identidade de um povo que, passado muitos anos
de sua independência, ainda insistia com a aquela dependência cultural dos
modelos europeus. Publicada em 1928, a obra com o subtítulo “o herói sem nenhum
caráter” foi escrita em pouco mais de um mês – dezembro de 1926 – e passou por
sucessivas revisões até ficar pronta. Apropriando-se da trajetória errante do
herói clássico, a narrativa é também uma epopeia do herói da nossa gente,
nascido no “fundo do mato-virgem”, às margens do rio Uraricoera, descendente da
tribo dos tapanhuma, em busca da famosa pedra muiraquitã.
Mário de Andrade, concorda Antônio Bento com o afirmado
pela crítica nacional, “foi na verdade o grande bandeirante e desbravador da
cultura nacional de seu tempo. Queria que os brasileiros escrevessem mais ou
menos como o povo fala comumente neste país. Pretendia mesmo estruturar uma
língua nossa, de amplitude nacional, sem regionalismos, já diversa da
portuguesa.” Macunaíma reveste-se
desse propósito, reavivando a estrutura linguística nossa como mais tarde fará
Guimarães Rosa, por exemplo.
Um ano depois da passagem do primeiro cinquentenário da obra,
em 1979, a Editora da Universidade de São Paulo, publicou uma luxuosa edição com
um conjunto de ilustrações feito desde 1943 por Carybé. O artista plástico
conheceu Mário de Andrade numa exposição de livros para bibliófilos no hall do
Hotel Palace no Rio de Janeiro. “Batemos um papo gordo, gostoso, de muita
sustância, quase uma feijoada verbal tomando chá com torradas e pão de
Petrópolis. Andamos a pé avenida abaixo até a livraria do Zé Olympio, vimos
amigos comuns e daí foi à estação tomar o noturno para São Paulo.”
Este encontro produziu entre essas duas figuras anos de
extensa troca de correspondências e nesse torvelinho de idas e vindas de
cartas, que o próprio Carybé junto com o também artista plástico Raul Brié
resolveram traduzir Macunaíma para o
espanhol. Se esta tradução chegou a ser publicada ou não, é algo que carece de
ser averiguado. Até a data de publicação da edição em questão, o trabalho não havia
encontrado uma editora.
Encantado pelo romance de Mário de Andrade, a ideia de
ilustrá-lo surge como uma alternativa para “amaciar os editores”. Era 1943. Mesmo
assim, a tradução não chegou a ser publicada. Newton Freitas, quem fazia o elo
entre Carybé e Mário de Andrade (o artista plástico, na época, vivia em Buenos
Aires e o escritor em São Paulo), foi quem apresentou ao autor, pela primeira
vez, o conjunto dessas ilustrações. Na ocasião, Mário aprovou, mas a editora que
o publicava no Brasil, não editava obras com ilustrações e apesar de
compreender a beleza do trabalho recusou o projeto em nome da homogeneidade da linha
editorial.
Depois da morte de Mário de Andrade, Carybé, certamente
entristecido com a desforra, tratou de vender todos os originais. Até que em
1957, “os bicos-de-pena viraram águas-fortes e o Macunaíma entrou triunfante para
os Cem Bibliófilos do Brasil”. Mesmo depois dessa primeira aparição e da fama construída
por Carybé dada as conquistas adquiridas nos anos subsequentes, a obra cai no
ostracismo e só vem ser redescoberta em 1978 – ano em que Antônio Bento se
dispõe a organizar a edição comemorativa. Reuniu-se, então, não apenas todas as
ilustrações como o comentário arguto do organizador avaliando a relação entre a
obra plástica e a narrativa verbal – texto pioneiro na interpretação entre as
duas expressões artísticas no Brasil.
Obra de vanguarda na literatura brasileira os desenhos de
Carybé, aos olhos de Antônio Bento alargam os limites plásticos da própria obra
de Mário. Para o crítico essas ilustrações alcançam o tom da narrativa de Macunaíma – obra que se filia ao lugar
do expressionismo –, dada sua espontaneidade em contraposição à caligrafia mais
disciplinada, elaborada, com traçados que parecem provir também do cubismo no
fim das produções de Carybé.
“Às vezes Carybé parece ter tido a tentação de evocar algo das
antigas estampas europeias, que ilustram os livros de Jean de Léry e Hans Staden, pioneiros na descrição da vida e dos costumes dos brasilíndios. Apesar
disso, creio que a similitude resultou mais da temática do que do traço do
artista. Este é mais expressionista do que arcaico, na representação dos
ambientes indígenas, com aves e bichos do Brasil. Na verdade, o artista fez com
o tema essencialmente indígena do livro um trabalho muito original.” – apresenta
Antônio Bento.
“Os desenhos de Carybé constituem uma visualização de várias
cenas e episódios da vida atribulada de Macunaíma.” – acrescenta. Parte deles está
reunida no catálogo que preparamos abaixo.
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