Admirável mundo novo, de Aldous Huxley

Por Pedro Fernandes



A lista de títulos de Aldous Huxley publicados pela Biblioteca Azul – Selo da Globo Livros – é bastante considerável: Admirável mundo novo, Contos escolhidos, Contraponto, Os demônios de Loudun, Folhas inúteis, O gênio e a deusa, A ilha, O macaco e a essência, Moksha, As portas da percepção, Céu e inferno, Sem olhos em Gaza, A situação humana, O tempo deve parar e Também o cisne morre; apresentados aqui não por ordem de publicação, mas por ordem alfabética. É bastante considerável se pensarmos que há importantes nomes estrangeiros com pouca ou nenhuma circulação por aqui. Do Aldous, quem dera podermos alcançar aqui a leitura de, pelo menos, todos esses títulos. Sim, porque, a obra do escritor inglês permanece espantosamente tão ou mais atual de quando sua aparição a partir da década de 1920, quando o mundo ainda vivia com certo encantamento o prodígio das máquinas. E ainda vive, talvez até mais. Não é isso que justifica o encantamento das pessoas junto às vitrines das lojas de eletrônicos em busca das últimas novidades no extenso catálogo de parafernálias tecnológicas que se múltipla ao infinito?

Quando Admirável mundo novo veio a lume, já o autor circulava com outras obras, entretanto, dificilmente o leitor se lembrará de outro título quando ouvir falar o nome do escritor que não seja este de 1932. Parte dessa extensa obra em circulação no Brasil ganha agora novos tons num projeto gráfico extremamente sedutor. E é esta a razão, muito possivelmente, de estarmos em redescoberta da importância da obra de Huxley. Admirável mundo novo está entre os primeiros títulos, sem dúvidas, quando o assunto é literatura de ficção científica. Com Farenheit 451, de Ray Bradbury e 1984, de George Orwell, compõem uma trilogia de clássicos do gênero – assim tratados não apenas pela capacidade inventiva de seus escritores como pelo trabalho significativo que empreenderam com a linguagem e a configuração de temas caros à formação da comunidade humana.

Não que Admirável mundo novo tenha valor apenas pelo certo tom profético assumido por uma visão futurista do seu escritor. O romance está além disso. Sua grande força está na forma crítica com que Aldous Huxley e outros viam todo o fulgor da realidade em seu tempo. Que afinal é esta uma parábola sobre determinado momento da história da humanidade. E, sim, ganha a projeção que ganha porque depois do apogeu da máquina nunca mais fomos os mesmos de nossos antepassados; tratamos dia após dia de expurgar o que de selvagem há em nós mesmo quando ainda não havia esse encantamento elevado em torno do novo. Por isso, este romance de 1932 se faz tão atual – que os exercícios de distanciamento do nosso passado têm se tornado, pelo avanço das tecnologias e dos modos como nos relacionamos com elas, muito mais comuns.

Este romance de Huxley é construído por sobre uma corda de ironia que desliza por todos os poros de certas expressões; quando lemos, a certa altura da narrativa, a palavra “seriedade”, por exemplo, como caracterização de um estado da personagem, é necessário que o leitor esteja aberto para o que o narrador esta insinuando com isso. É um exercício minucioso, uma subtilidade significativa que uma vez alcançada nos conduz para compreensão sobre a grandeza da obra.

E não finda aí: ao contrário de Ray Bradbury que é um tanto poético – e mesmo os cenários de suas narrativas sugerem certa decadência como se já tivéssemos ido para o pós-avanço da tecnologia a ponto de termos alcançado a supremacia de povoar Marte depois de o fim da civilização terrestre – Huxley concede uma oportunidade a humanidade por aqui mesmo. Em condições muito avançadas, o que esta nova civilização alcançou foi uma série de descobertas que está além da parafernália tecnológica. Esta muito se parece com o que já vivemos: os meios de transporte aéreo, o cinema de sensações, por exemplo, pouco diferem do que alcançamos. Mesmo as questões de equidade entre as pessoas não foram alcançadas: a sociedade aí se divide em castas e tem forte domínio machista.

O perigo maior visto pela lente do escritor inglês está no desenvolvimento de outra esfera da tecnologia, a biotecnologia, esclarecida por ele num prefácio acrescentado à edição, como a única forma que alteraria profundamente a estrutura da comunidade humana. Mais ainda se, associado à biotecnologia, estiver o aperfeiçoamento de outras formas de poder, como é caso no universo de Admirável mundo novo. Apagada toda e qualquer possibilidade de sentimento enformador da humanidade e todas suas expressões – o tempo, por exemplo, aí é marcado de outra maneira, d.F e a.F, depois de Ford e antes de Ford, respectivamente – o que se observa é a criação de uma comunidade sintética.

Destruída toda e qualquer possibilidade não só de sentimento, mas de dor, de dificuldades, de deformação, pela criação de uma comunidade padronizada, pode-se dizer que a distopia de Huxley apela para o fomento de um Império da Racionalidade: “As flores do campo e as paisagens, advertiu, têm um grande defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica. Decidiu-se que era preciso aboli-lo [o gosto e admiração da natureza], pelo menos nas classes baixas”.  Aldous Huxley preocupa-se em, sem didatismo, explorar profundamente todo o funcionamento dessa nova sociedade e sobre o tratamento dado ao humano em suas diversas fases.

Se tudo funciona de modo perfeito, o leitor terá de se aventurar pela narrativa para saber, adiantamos, porém que todo e qualquer extremismo tem suas consequências nem sempre reversíveis. O Império da Razão se sustenta através da conjunção de outros poderes: o do capital aqui propriedade formada nos mesmos princípios do ópio da religião mas ainda considerando sempre o lucro no final de todo e qualquer processo; a repressão silenciosa, tornada mesmo numa forma prototípica da democracia; e a propaganda oferecida em doses cavalares durante toda a formação dos indivíduos. Ficamos diante um sistema muito próximo ao da ditadura – sustentado por um pequeno grupo encarregado e manter essa ordem em sua conformidade.

A questão é que, nenhum sistema funciona sozinho e onde há humanos, mesmo que fabricados, não há perfeição. Mais ainda quando os do topo do poder têm seus segredos guardados a sete chaves mas não incapazes de vir a superfície e colocar em risco toda sofisticação do sistema. Em Admirável mundo novo há muitos: quase todos possuem uma fraqueza escondida sob altas camadas de soma – espécie de pílula usada para socorrer toda sorte humanidade que oferecer perigo a centralidade dos sujeitos.

A impressão que nos fica – e a nomenclatura do novo tempo atesta isso – é que as imagens de expansão do fordismo, movimento que alavancou a produção de veículos, tornou o carro elemento popular, símbolo do consumismo e isso tudo via forte doses de propaganda tendo por ordem o progresso social, tenham mexido muito com o imaginário de Huxley, a ponto de vislumbrá-lo, no futuro, com a mesma força na uniformização de pessoas.

Fugindo do enredo – que esta parte interessa mais ao leitor – e voltando a narrativa, é encantador a aproximação da escrita de Huxley com as fronteiras do cinema: atenção seja dada, por exemplo, no capítulo três – enquanto o diretor do grande centro de reprodução  humana está recebendo estudantes para apresentar o empreendimento e falar um pouco acerca dos tempos passados de humanidade, o texto fragmenta-se para dar conta de outras narrativas que ganharão força no andamento e desfecho do romance, a aproximação do narrador da rotina da personagem Lenina, jovem que trabalha no centro e a aproximação de Bernard Marx (toda atenção a este nome), jovem que está sempre se questionando acerca da ordem do sistema. Fragmentação esta que se acentua ao ponto de quase fundir os acontecimentos numa mesma linha de existência.

Particularmente o embate entre civilização e barbárie – assinalado com melhor propriedade já próximo do desfecho da narrativa – é o responsável pelo melhor do romance. Também o processo de construção do enredo aí ganha outra dimensão devido a constante intromissão intertextual de elementos da literatura clássica inglesa; perdemos de vista as vezes em que a obra de William Shakespeare, por exemplo, é mencionada – Hamlet, Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão, O mercador de Veneza, Otelo, A tempestade, Rei Lear, Júlio César. Não apenas isso, mas é o embate entre o moderno e o clássico aquilo que sustenta as linhas de tensão da narrativa.

Por fim, não podemos escapar da ideia de que Admirável mundo novo seja uma ácida crítica ao rumo tomado pela sociedade, integralmente fundada no consumismo, no jogo sujo de interesses particulares. O fim de tudo? Não queiram saber. Mas, prepare-se, que não é nada positivo; afinal esse modelo social é labirinto cujo desfecho não é nenhum pouco um final feliz. 


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