A república das abelhas, de Rodrigo Lacerda

Por Pedro Fernandes


Há falhas. E é mesmo este o perigo de todo escritor – ainda saindo do casulo – aventurar-se pela grandeza do romance. Num primeiro momento, não me deterei nas falhas, mas no que de grande escapa na escrita de A república das abelhas. O livro nasceu depois do convite da editora que o publicou, a Companhia das Letras, quando em 2010, o próprio Rodrigo escreveu um breve texto intitulado “Política” para o caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo. Tenho comigo que o escritor poderia ter recusado o convite, mas como um gesto de desafiar-se, deu início a ideia: transformar os seus antecessores, sobretudo a figura emblemática da história brasileira, o avô Carlos Lacerda, em personagem numa narrativa que, na ausência de melhor distintivo optarei por seguir o nome fornecido pelo próprio Rodrigo, é um romance histórico.

Em relação a essa coisa do gênero, A república das abelhas é um texto fronteiriço entre a biografia, o relato jornalístico, a narrativa histórica, o memorial, e o romance – termo do qual mais se distancia pela quase ausência da sagacidade da narração e todo seu imbróglio e da força do diálogo, castrado por pouca fala direta e forte incidência do discurso indireto. No que se refere aos protocolos da narração, em boa parte das vezes temos a sensação de estar diante de um catálogo de dados históricos, transcritos com uma precisão somente abalada quando num rampante damos conta de que estamos diante de uma ficcionalização do acontecido. Mesmo porque, o acontecido chega ao escritor atravessado pela memória alheia; ele não viveu tudo o que está aí narrado, mas empapou-se num processo de apropriação dos acontecimentos a partir, certamente, de uma extensa dedicação à leitura de material do tempo em que se aloja a narração: o próprio avô deixou muita coisa escrita, coisa que se vê, foi integralmente lida por Rodrigo, sem falar naquela pesquisa mais ou menos elaborada que é dado a fazer antes de qualquer texto, mais ainda num em que a história é quase determinante da ação.

Era mesmo para ser um texto do histórico. Ficaria bem. Mas, há o espírito aventureiro, o mesmo que aceitou o desafio da escrita desta obra, em, apesar de toda minúcia, não querer assumir uma responsabilidade maior sobre o dito. E forja um narrador-defunto ao modo do narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis – “Morri em cinco minutos, agonizando pela falta de oxigenação do sangue, sem nunca perder a consciência. Meu coração parou de bater exatamente à uma e cinquenta e cinco da madrugada de sábado”; só ao modo, porque o narrador de Rodrigo não consegue ter o mesmo tom galhofeiro, a verve da ironia, nem o trânsito livre sobre o acontecido. Temos a impressão que seu narrador é escoltado por um passado muito grandioso do qual não pode dar conta – seja porque pode se trair na descrição de certas situações seja porque pode cair num mero repeteco de já-ditos. O narrador-defunto de Rodrigo é ainda tomado de uma seriedade de homem público, seriedade que se confunde e muito com a própria imagem que a pessoa do escritor tem, certamente, da figura do avô. A ideia machadiana é decerto um tiro certeiro para quem quer ora demarcar a aproximação devida sobre os acontecimentos ora se desvencilhar da verdade documentada. Mas, soa num tom falsário quando o defunto alcança a memória de um Funes: sabe o terno com que foi vestido para o funeral, a placa da Kombi que o transportou ao cemitério, a precisão das datas de todos os acontecimentos, tudo, sem titubeios.

Como em É breve tudo será mistério e cinza, de Alberto A. Reis esse impasse entre o ficcional e o histórico exerce um forte poder de distanciamento do leitor para com a narrativa; esta que se deixa tomar, muitas vezes, por um exercício maçante de referências que se juntam como uma colagem de anotações e investigação dessas notas. Serve tudo isso, entretanto, para uma incursão necessária, num país não raramente acusado de memória curta, pela história nacional, ainda que no caso de A república estejamos diante do ponto de vista não do marginalizado, mas de um protagonista dos acontecimentos históricos. Nesse sentido, talvez se Rodrigo tivesse se dado ao trabalho de maquinar melhor seu narrador, tivéssemos outro ângulo ou foco sobre o acontecido e o seu romance então assumisse uma posição mais acentuada enquanto obra de arte. A vantagem que a escolha por esta voz narrativa representa está para o caso de o leitor enfim se situar ao lado da voz interior da história, a voz que mesmo tendo presenciado o que presenciou e até se metido no processo decisório dificilmente tinha noção do grau que representava suas ações para o andamento da história do país. Mesmo que esta voz seja uma ficcionalização do ocorrido o pacto realista assumido entre a narração e o leitor permite que ele se situe no interior do acontecido e vá tecendo outras imagens possíveis da história.

Dividido em três partes – “O cão negro”, “Camartelos, cavalos de charrete e outros destruidores sistemáticos” e “Debaixo da terra – a obra busca a elaboração de uma imagem não apenas de Carlos Lacerda, feito protagonista da narração, mas nem chegando a ocupar essa posição; o escritor parece assumir o interesse de compreender a figura do avô como um sujeito bricolado, composto pelas diversas forças sociais, culturais, políticas de um Brasil ainda em formação quanto a um estado livre e democrático. Ou não é isso o texto estilo prólogo que abre a narrativa? Mais que demarcar a origem histórica dos Lacerda, “As aldeias do capitão Werneck” vai às origens da formação colonial brasileira, apresentada aqui pelo embate de forças entre brancos e indígenas, brancos e negros, e a posição controversa da família assumida desde então num embate entre a situação e a oposição. Esta é, aliás, a linha ou a dorsal em que se apoia toda a extensa obra.

E é mesmo como produto de um jogo de forças que Rodrigo Lacerda parece buscar formar essa imagem ficcional do avô – “A vida para dentro e a vida para fora não tem contradições irredutíveis, têm choques, atritos inevitáveis. E o que a narrativa toda desenvolve são os atritos que dão forma a posição contraditória assumida pela família Lacerda: ora situação, ora rompendo com a situação por acreditar numa outra posição histórica para o país e, evidente, para si, ora voltando a infiltrar-se como conivente com o poder. O leitor melhor informado sobre os meandros da história do país sentirá falta, por exemplo, de momentos como a postura inversa do Carlos Lacerda ao eleger-se governador do Estado da Guanabara (então Rio de Janeiro) entre 1960 e 1965 – o romance é, infelizmente, encerrado uma década antes disso (pretensão de um segundo volume?).

A biografia romanceada de Carlos Lacerda reveste-se de um forte tom político; mesmo as situações familiares convencionais como a descoberta do narrador-personagem da traição de seu pai, que preso numa cama depois de todo o suplício que passa nas mãos dos militares recebe debaixo de seus olhos a visita da amante com sua irmã bastarda, mesmo tais situações não conseguem florescer a ponto de romper com a seriedade com que é tomada a obra; mesmo tais situações estão sempre acomodadas em benefício de elaboração de uma imagem política. Além de serem situações muito pequenas diante do cabedal de enxertos com situações da história do Brasil e frames críticos sobre tais eventos, fora o apanhado de informações geográficas, musicais, botânicas, científicas e de outra ordem que, no mesmo ponto que enriquece a narração faz dela ainda mais densa e séria.

Como a história primeira do Brasil é a história do embate entre grupos do sul-sudeste pelo poder central e quase um fechamento em relação às outras regiões do país – mesmo Euclides da Cunha já tendo dado a conhecer outra parte esquecida da nação e ser esta até uma obra de referência para o narrador-personagem – A república das abelhas coloca ao olho do leitor comum a efervescência de toda uma leva de fluxos históricos: o nascimento da república, as primeiras ditaduras, as colunas armadas, os movimentos trabalhistas, as revoluções... Aí estão, pelo trabalho criativo e imaginativo do romancista um inventário, rico inventário diga-se, sobre os conchavos, o vai e vem das alianças,  o desenvolvimento da consciência política nacional. Isso tudo é o ponto alto deste texto: em grande parte, Rodrigo consegue aliar pesquisa e o trabalho inventivo.

O que periga mesmo é algo que já foi assinalado por outros críticos – o didatismo corrente da narrativa como se prendendo a uma linearidade cronológica, outro princípio que falseia o tom memorialístico dado pela voz que fala, a de um morto, a própria imagem controvertida da personagem, sempre muito seguro e dono de um juízo de igual valor para as situações que saem da via brumosa dos acontecidos. Outro pecado nesse processo é o titubeio linguístico – vezes parece que o escritor quer dar à narrativa uma linguagem peculiar ao tempo em que se desenvolve as ações, mas perde-se e volta para uma “voz moderna” que se distancia muito certamente da voz da personagem, a ponto de não convencer o leitor que ele está diante de um possível Carlos Lacerda. Acrescente a isso certos anacronismos linguísticos.

Nenhum romance defende uma tese, mas há pontos de vista pelos quais se guiam todos os textos; no caso de A república das abelhas ficará ao menos algo além da coleção de fatos e sua versão muito própria sobre tais acontecimentos históricos: o homem é um animal e um animal político, ainda que não como as abelhas que prontamente só dispõe de dois pontos de vista instintivo. A certa altura, é o próprio Carlos quem diz: “Muitos me acusam de ser incoerente, mas sempre achei que era uma virtude mudar de ideia toda vez que tinha uma ideia melhor”. Findo dizendo, tenha as falhas que tiver, este texto tem algo a nos dizer: a dizer inclusive de nossa identidade, do momento em que estamos e do porquê somos esta nação e não outra, e é até uma obrigação de todos saberem onde estivemos e como vimos elaborando o extenso percurso de mais de quinhentos anos que já cumprimos.


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