A república das abelhas, de Rodrigo Lacerda
Há falhas. E é mesmo este o perigo de todo escritor – ainda saindo
do casulo – aventurar-se pela grandeza do romance. Num primeiro momento, não me
deterei nas falhas, mas no que de grande escapa na escrita de A república das abelhas. O livro nasceu
depois do convite da editora que o publicou, a Companhia das Letras, quando em 2010, o próprio Rodrigo escreveu um breve texto intitulado “Política” para o
caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo. Tenho comigo que o
escritor poderia ter recusado o convite, mas como um gesto de desafiar-se, deu
início a ideia: transformar os seus antecessores, sobretudo a figura
emblemática da história brasileira, o avô Carlos Lacerda, em personagem numa
narrativa que, na ausência de melhor distintivo optarei por seguir o nome
fornecido pelo próprio Rodrigo, é um romance histórico.
Em relação a essa coisa do gênero, A república das abelhas é um texto fronteiriço entre a biografia, o
relato jornalístico, a narrativa histórica, o memorial, e o romance – termo do
qual mais se distancia pela quase ausência da sagacidade da narração e todo seu
imbróglio e da força do diálogo, castrado por pouca fala direta e forte incidência
do discurso indireto. No que se refere aos protocolos da narração, em boa parte
das vezes temos a sensação de estar diante de um catálogo de dados históricos,
transcritos com uma precisão somente abalada quando num rampante damos conta de
que estamos diante de uma ficcionalização do acontecido. Mesmo porque, o
acontecido chega ao escritor atravessado pela memória alheia; ele não viveu tudo o que está aí
narrado, mas empapou-se num processo de apropriação dos acontecimentos a
partir, certamente, de uma extensa dedicação à leitura de material do tempo em
que se aloja a narração: o próprio avô deixou muita coisa escrita, coisa que se
vê, foi integralmente lida por Rodrigo, sem falar naquela pesquisa mais ou menos
elaborada que é dado a fazer antes de qualquer texto, mais ainda num em que a história é quase determinante da ação.
Era mesmo para ser um texto do histórico. Ficaria bem. Mas, há
o espírito aventureiro, o mesmo que aceitou o desafio da escrita desta obra,
em, apesar de toda minúcia, não querer assumir uma responsabilidade maior sobre
o dito. E forja um narrador-defunto ao modo do narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis – “Morri em
cinco minutos, agonizando pela falta de oxigenação do sangue, sem nunca perder
a consciência. Meu coração parou de bater exatamente à uma e cinquenta e cinco
da madrugada de sábado”; só ao modo, porque o narrador de Rodrigo não consegue
ter o mesmo tom galhofeiro, a verve da ironia, nem o trânsito livre sobre o
acontecido. Temos a impressão que seu narrador é escoltado por um passado muito
grandioso do qual não pode dar conta – seja porque pode se trair na descrição de
certas situações seja porque pode cair num mero repeteco de já-ditos. O
narrador-defunto de Rodrigo é ainda tomado de uma seriedade de homem público,
seriedade que se confunde e muito com a própria imagem que a pessoa do escritor
tem, certamente, da figura do avô. A ideia machadiana é decerto um tiro
certeiro para quem quer ora demarcar a aproximação devida sobre os
acontecimentos ora se desvencilhar da verdade documentada. Mas, soa num tom falsário
quando o defunto alcança a memória de um Funes: sabe o terno com que foi
vestido para o funeral, a placa da Kombi que o transportou ao cemitério, a precisão
das datas de todos os acontecimentos, tudo, sem titubeios.
Como em É breve tudo
será mistério e cinza, de Alberto A. Reis esse impasse entre o ficcional e
o histórico exerce um forte poder de distanciamento do leitor para com a
narrativa; esta que se deixa tomar, muitas vezes, por um exercício maçante de referências que se
juntam como uma colagem de anotações e investigação dessas notas. Serve tudo isso,
entretanto, para uma incursão necessária, num país não raramente acusado de
memória curta, pela história nacional, ainda que no caso de A república estejamos diante do ponto de
vista não do marginalizado, mas de um protagonista dos acontecimentos históricos.
Nesse sentido, talvez se Rodrigo tivesse se dado ao trabalho de maquinar melhor
seu narrador, tivéssemos outro ângulo ou foco sobre o acontecido e o seu
romance então assumisse uma posição mais acentuada enquanto obra de arte. A vantagem
que a escolha por esta voz narrativa representa está para o caso de o leitor
enfim se situar ao lado da voz interior da história, a voz que mesmo tendo
presenciado o que presenciou e até se metido no processo decisório dificilmente
tinha noção do grau que representava suas ações para o andamento da história do
país. Mesmo que esta voz seja uma ficcionalização do ocorrido o pacto realista
assumido entre a narração e o leitor permite que ele se situe no interior do acontecido
e vá tecendo outras imagens possíveis da história.
Dividido em três partes – “O cão negro”, “Camartelos,
cavalos de charrete e outros destruidores sistemáticos” e “Debaixo da terra – a
obra busca a elaboração de uma imagem não apenas de Carlos Lacerda, feito
protagonista da narração, mas nem chegando a ocupar essa posição; o escritor
parece assumir o interesse de compreender a figura do avô como um sujeito
bricolado, composto pelas diversas forças sociais, culturais, políticas de um
Brasil ainda em formação quanto a um estado livre e democrático. Ou não é isso o
texto estilo prólogo que abre a narrativa? Mais que demarcar a origem histórica
dos Lacerda, “As aldeias do capitão Werneck” vai às origens da formação colonial
brasileira, apresentada aqui pelo embate de forças entre brancos e indígenas,
brancos e negros, e a posição controversa da família assumida desde então num
embate entre a situação e a oposição. Esta é, aliás, a linha ou a dorsal em que
se apoia toda a extensa obra.
E é mesmo como produto de um jogo de forças que Rodrigo
Lacerda parece buscar formar essa imagem ficcional do avô – “A vida para dentro
e a vida para fora não tem contradições irredutíveis, têm choques, atritos inevitáveis.
E o que a narrativa toda desenvolve são os atritos que dão forma a posição
contraditória assumida pela família Lacerda: ora situação, ora rompendo com a situação
por acreditar numa outra posição histórica para o país e, evidente, para si,
ora voltando a infiltrar-se como conivente com o poder. O leitor melhor informado
sobre os meandros da história do país sentirá falta, por exemplo, de momentos
como a postura inversa do Carlos Lacerda ao eleger-se governador do Estado da
Guanabara (então Rio de Janeiro) entre 1960 e 1965 – o romance é, infelizmente,
encerrado uma década antes disso (pretensão de um segundo volume?).
A biografia romanceada de Carlos Lacerda reveste-se de um forte
tom político; mesmo as situações familiares convencionais como a descoberta do
narrador-personagem da traição de seu pai, que preso numa cama depois de todo o
suplício que passa nas mãos dos militares recebe debaixo de seus olhos a visita
da amante com sua irmã bastarda, mesmo tais situações não conseguem florescer a
ponto de romper com a seriedade com que é tomada a obra; mesmo tais situações estão
sempre acomodadas em benefício de elaboração de uma imagem política. Além de
serem situações muito pequenas diante do cabedal de enxertos com situações da
história do Brasil e frames críticos sobre tais eventos, fora o apanhado de informações
geográficas, musicais, botânicas, científicas e de outra ordem que, no mesmo
ponto que enriquece a narração faz dela ainda mais densa e séria.
Como a história primeira do Brasil é a história do embate
entre grupos do sul-sudeste pelo poder central e quase um fechamento em relação
às outras regiões do país – mesmo Euclides da Cunha já tendo dado a conhecer
outra parte esquecida da nação e ser esta até uma obra de referência para o
narrador-personagem – A república das
abelhas coloca ao olho do leitor comum a efervescência de toda uma leva de
fluxos históricos: o nascimento da república, as primeiras ditaduras, as
colunas armadas, os movimentos trabalhistas, as revoluções... Aí estão, pelo
trabalho criativo e imaginativo do romancista um inventário, rico inventário diga-se,
sobre os conchavos, o vai e vem das alianças, o desenvolvimento da consciência política
nacional. Isso tudo é o ponto alto deste texto: em grande parte, Rodrigo
consegue aliar pesquisa e o trabalho inventivo.
O que periga mesmo é algo que já foi assinalado por outros críticos
– o didatismo corrente da narrativa como se prendendo a uma linearidade cronológica,
outro princípio que falseia o tom memorialístico dado pela voz que fala, a de
um morto, a própria imagem controvertida da personagem, sempre muito seguro e
dono de um juízo de igual valor para as situações que saem da via brumosa dos
acontecidos. Outro pecado nesse processo é o titubeio linguístico – vezes parece
que o escritor quer dar à narrativa uma linguagem peculiar ao tempo em que se
desenvolve as ações, mas perde-se e volta para uma “voz moderna” que se
distancia muito certamente da voz da personagem, a ponto de não convencer o
leitor que ele está diante de um possível Carlos Lacerda. Acrescente a isso
certos anacronismos linguísticos.
Nenhum romance defende uma tese, mas há pontos de vista pelos quais se guiam todos os textos; no caso de A república das abelhas ficará ao menos algo além da coleção de fatos e sua versão muito própria sobre tais acontecimentos históricos: o homem é um animal e um animal político, ainda que não como as abelhas que prontamente só dispõe de dois pontos de vista instintivo. A certa altura, é o próprio Carlos quem diz: “Muitos me acusam de ser incoerente, mas sempre achei que era uma virtude mudar de ideia toda vez que tinha uma ideia melhor”. Findo dizendo, tenha as falhas que tiver, este texto tem algo a nos dizer: a dizer inclusive de nossa identidade, do momento em que estamos e do porquê somos esta nação e não outra, e é até uma obrigação de todos saberem onde estivemos e como vimos elaborando o extenso percurso de mais de quinhentos anos que já cumprimos.
Nenhum romance defende uma tese, mas há pontos de vista pelos quais se guiam todos os textos; no caso de A república das abelhas ficará ao menos algo além da coleção de fatos e sua versão muito própria sobre tais acontecimentos históricos: o homem é um animal e um animal político, ainda que não como as abelhas que prontamente só dispõe de dois pontos de vista instintivo. A certa altura, é o próprio Carlos quem diz: “Muitos me acusam de ser incoerente, mas sempre achei que era uma virtude mudar de ideia toda vez que tinha uma ideia melhor”. Findo dizendo, tenha as falhas que tiver, este texto tem algo a nos dizer: a dizer inclusive de nossa identidade, do momento em que estamos e do porquê somos esta nação e não outra, e é até uma obrigação de todos saberem onde estivemos e como vimos elaborando o extenso percurso de mais de quinhentos anos que já cumprimos.
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