A literatura filha da revolução

Por Antonio Jiménez Barca

Valter Hugo Mãe. Foto: Nelson Aires.


A desumanização, o romance mais recente de Valter Hugo Mãe (Saurimo, Angola, 1971), um dos novos escritores portugueses mais premiados, se passa na Islândia. Para onde vão os guarda-chuvas, o livro que consagrou Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971), se situa num impreciso Paquistão meio fantasmagórico que as vezes parece saído de um conto de As mil e uma noites. São dois exemplos das mais inovadoras propostas da notável geração atual de escritores portugueses que mais angariam prêmios e são os mais acompanhados pelos leitores. Alguns os acusam de escapistas. Outros destacam sua vocação internacional e sua suprema liberdade de narrar o que se passa na alma.

Estão próximos dos quarenta. Nasceram, pois, nos anos setenta e começaram a publicar no início do século. Agora eclodiram. Têm êxito. Não é raro que na Feira do Livro de Lisboa algum deles tenha uma centena de seguidores  à espera de seu autógrafo. Pertencem a uma geração que não viveu a Revolução dos Cravos ou que a viveu sendo ainda muito criança. De fato, é o primeiro grupo de escritores portugueses livre por completo das amarras da memória dessa quase mitológica data, o 25 de abril de 1974, que significa tudo para Portugal e serve de fronteira entre o passado e o presente do país. “Não se sentem vinculados a nada, nasceram livres”, assegura a escritora e editora Maria do Rosário Pedreira, responsável pelo descobrimento de boa parte destes autores. “Durante a ditadura, e muito tempo depois, Portugal se debateu entre o neorrealismo e o existencialismo. Até António Lobo Antunes e José Saramago. A geração posterior a eles também considerava que devia escrever, por assim dizer, comprometida. Mas estes novos autores não. O que os caracteriza, precisamente, é a falta da necessidade de estar comprometidos, sua riqueza de estilos, sua maior preocupação formal, o haver estudado fora, o haver vivido até tarde em casa dos pais. E, literariamente, hão sido capazes de recolher as cartas de Lobo e Saramago, embaralhá-las e reparti-las de novo”, acrescenta.

Esta especialista, sem ser muito taxativa com as datas, data o impreciso nascimento deste grupo em 2001 com a publicação de Nenhum olhar, de José Luís Peixoto (Galveias, 1974), uma narrativa que se passa numa aldeia do Alentejo profundo, mas com ressonâncias alegóricas e até bíblicas, com uma potência simbólica que a distancia do realismo. Anos depois, a publicação do premiado Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares (Luanda, Angola, 1970), talvez o autor mais internacionalmente reconhecido deste pelotão de novos narradores, confirmou o advento de um novo modo de narrar. O romance descreve uma só e alucinada noite de vários personagens que transitam por uma cidade estranha da Europa central.

José Luís Peixoto

José Luís Peixoto nasceu numa pequena aldeia do Alentejo e reivindica para si – e para seu país – tanto seu passado rural como seu moderno futuro cosmopolita. Recorda a visita aos povoados de sua infância das denominadas, então, “bibliotecas itinerantes”, e de como elas foram seu primeiro contato com os livros. Mas também assegura que sua geração foi a primeira que gozou de uma oportunidade chave: “A de escolher caminhos específicos e únicos”.

Este escritor, que acaba de publicar um livro de viagens que descreve sua passagem pela Coreia do Norte intitulado Dentro do segredo, reconhece que os escritores portugueses encontram dificuldades para olhar o seu próprio país. “Talvez seja porque Portugal tem um problema de ver-se a si mesmo. Não sabemos se somos pequenos ou grandes. Se somos grandes tivemos um império ou se somos pequenos porque nos disseram a troika o que temos que fazer”. Mas sublinha que essa tendência começa a quebrar-se: seu último romance, Livro, narra a sofrida imigração portuguesa a Paris dos anos sessenta e setenta. E recorda o caso do exitoso romance O retorno, de Dulce Maria Cardoso, que conta o drama de 500 mil pessoas obrigadas a de repente regressar a Portugal, procedentes das antigas colônias portuguesas, principalmente Angola e Moçambique. 

Não eram todos portugueses, porque muitos haviam nascido na África; mas tampouco era angolanos ou moçambicanos por inteiro: de fato os expulsaram da terra que havia nascido, uma vez que se declarou a independência. Só os restou regressar a uma metrópole com a que não contavam e que não contava com eles. A mesma Dulce Maria Cardoso, nascida em Angola em 1964, que viveu até os 10 anos em Luanda, foi uma delas, e sua obra, mais que ajustar contas com a história ou os governantes ou os políticos de então uma aproximação – generosa, sem sublinhar os bons e os maus – com esse tempo seu de infância, muitos anos depois. Os personagens sentem nostalgia por uma pátria perdida irremediavelmente, Angola, mas também pela mãe pátria idealizada que não resistiu o cara a cara e que, apesar de tudo, tiveram de refugiar-se. Tudo isso está contado com realismo, ritmo e inteligência por um adolescente amedrontado, estranhado, ativo e valente, que vê seu mundo oscilar sem que a seu lado se levante outro fiável.

O êxito do romance de Cardoso (várias edições, milhares de exemplares vendidos, muitos artigos sobre o assunto) indica a necessidade de Portugal por este tipo de histórias-espelho, mas a escritora confessou há algum tempo que havia necessitado todos estes anos para poder abordar seriamente o assunto.

Peixoto sustém que, apesar de a sua atmosfera onírica, em todos os seus livros fala de Portugal. “Inclusive quando vou a Coreia e descrevo a Coreia, escrevo de Portugal, do negativo de Portugal. É certo que, nos anos noventa, o país quis deixar atrás sua imagem de terra atrasada. Mas essa mulher de negro que habita algum lugar de nossas aldeias não é uma estranha para nós. É a mãe de nossa mãe: é nossa avó”.

Gonçalo M. Tavares

E sem dúvidas, muitos veem outra falta que este grupo de escritores modernos, atentos a realidade, implicados nas redes sociais e nos jornais, amigos entre si, o de não se implicarem mais ao tema que por excelência atravessa Portugal diariamente: o da crise econômica que se alonga por todos os lados e que com que os portugueses vivam cada um pouco pior. “É certo que estamos vivendo um momento terrível. Pela pobreza que se vê e pelo desemprego. E eu estou muito afetado, claro, como todos. Mas não creio que a literatura seja a melhor maneira de refletir sobre o muito contemporâneo. Embora a crise não tenha chegado ao tema do romance, um dia chegará”, diz Peixoto. “São muito criativos, muito artistas. Se preocupam mais com sua história que com a história. Mas estão dotados para alterar o branco. E não me estranharia que o fizeram”, assinala Maria do Rosário Pedreira.

Clara Capitão, a diretora editorial da Alfaguara em Portugal, coincide também em localizar esta crise demasiadamente demolidora no momento atual, demasiado presente para que sirva de material literário. “Mas isso não quer dizer que este grupo de escritores não se mostre muito crítico com as políticas de austeridade e com a situação do país. Escrevem em jornais e revistas, e aí são muito ativos, como são muito ativos, por exemplo, Peixoto ou Hugo Mãe, em suas contas pessoais no Facebook”, diz. Capitão recorda, por outro lado, que um dos livros mais reconhecidos desta geração, A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, não deixa de ser uma reflexão sobre o modo pessimista de ser português; escrita com o selo personalíssimo e melancólico do autor. A editora assegura que, seja como for, é uma geração de escritores jovens muito traduzidos fora de Portugal, que se consideram netos por igual de José Saramago e António Lobo Antunes.  

Afonso Cruz

Afonso Cruz, como outros muitos escritores desta geração, não é só um escritor, é também ilustrador, desenhista de filmes, de desenhos animados, pintor e músico, entre outras coisas. Vive com  sua família no povoado perdido do Alentejo remoto, próximo à fronteira com a Espanha, mas viaja frequentemente por todo mundo e passou boa parte de sua vida viajando. Seu último livro, Para onde vão os guarda-chuvas já há conquistada um bom punhado de leitores, além de um conjunto de boas críticas. É um relato extemporâneo, estranho, longo, 600 páginas divididas em capítulos muito curtos: narram a perda de um filho por parte de um vendedor de tapetes de um país parecido com o Paquistão contemporâneo nas mãos de um pelotão de soldados estadunidenses que o pegam como mafioso. Um hindu, então aconselha ao vendedor de tapetes que para reduzir a angústia que o afunda em depressão deve adotar um filho... de nacionalidade estadunidense. Na casa do comerciante, numa mistura algo esquizofrênica, residem, além do comerciante e do filho adotivo, um primo mudo e sem pelo e uma irmã louca para conseguir um marido que lhe dê um par de sapados de bomba e estilete. A todo tempo a narrativa destaca parábolas orientais, assassinatos, relatos realistas da deportação de crianças, e dezenas de golpes de humor e ódio. “A ideia vem da resposta que Gandhi deu a um hindu que perguntou o que podia fazer depois que um mulçumano  havia matado seu filho. Gandhi o respondeu que adotasse um menino mulçumano. É uma maneira de superar isso de olho por olho e dente por dente”, diz Cruz.

O escritor, numa cafeteria no centro de Lisboa procedente de seu povoado, assegura que, em sua opinião, as causas aparentemente longe não estão realidade tão longe: “Não posso hierarquizar o valor das vidas humanas. Isso de que valem mais que as que estão mais além de mim ou não vão comigo. E um problema no Paquistão ou no Iraque também é um problema aqui. Não só são os desempregados de Portugal, são os escravos da África ou do Oriente Médio”. Para Cruz, o mundo estreitou-se, as cidades deixaram de ser particulares e únicas e passaram a ser todos muito parecidas, perdendo o caminho de sua própria identidade: “Por isso é difícil definir o que é Portugal. Porque Lisboa é parecida com Londres ou Madri, com os mesmos moveis de Ikea, com a mesma gente que leva os mesmos sapatos, que como quase o mesmo. Depois de ter viajado tanto, a portugalidade passa menos importante”, diz.

João Tordo

João Tordo (Lisboa, 1975) é autor já de sete romances, de temas muito diferentes. Alguns deles, como Anatomia dos mártires, aborda precisamente a aparente abulia ou indiferença política de sua própria geração. Por um lado se confessa tão português “como de qualquer outra parte”. De fato, viveu em Londres e nos Estados Unidos e, como seus companheiros de geração, viaja muito. Assim, romances se localizam tanto em Portugal como em qualquer outra parte. Mas também assegura que só começou a compreender seu próprio país quando residiu fora dele: “Somos um povo que se lamenta do passado e tem medo do futuro. E isso nos impede de ver o presente”. E completa: “Jamais vi tanta pobreza ao meu redor, tantas lojas fechadas. Lisboa, com seus restaurantes e seus turistas, constitui-se talvez um oásis. Mas, além da crise econômica, o que me assusta mais é uma sorte de crise espiritual. Nosso governo só fala de números, nossos governos são só contadores. E este discurso esmagador nos impede, outra vez, de ver o presente. É como se vivêssemos com umas orelhas de burro. Talvez tenhamos a obrigação de voltar a ser escritores comprometidos”.

* Este texto é a tradução livre de "Hijos de la revolución", de Antonio Jiménez Barca, publicado no jornal El País

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