Poesia, de Alberto Caeiro
Por Pedro Belo Clara
Embora
o real autor em causa seja um dos que tem o conjunto da sua obra mais digerido
e esmiuçado pelo leitor lusófono, tanto que por vezes parece roçar o arriscado
domínio dos “lugares-comuns”, a verdade é que um conhecimento superficial sobre
certas temáticas não se poderá equiparar a uma avaliação mais demorada sobre as
mesmas, ainda que se evite cair em extremos pouco proveitosos. Assim, com o
intuito de clarear alguma visão mais toldada, ou simplesmente colocar “nomes em
percepções somente ao leve percepcionadas”, se elegeu este valioso trabalho
compilatório da “dispersa globalidade” que Caeiro produziu.
A
edição em causa, do livro que se pretende mais introduzir ao leitor do que
propriamente analisar, remonta a 2001 e foi dada aos prelos sob a chancela da
Assírio e Alvim. Na verdade, esta editora muito recentemente levou a cabo novos
esforços de reeditar muitos dos trabalhos assinados por Pessoa e seus
heterónimos, tornando-os, sob uma determinada perspectiva, mais acessíveis ao
leitor comum. Assim, a toada marcadamente académica que as anteriores possuíam,
e da qual este mesmo livro é um vivo exemplo, diluiu-se de sobremaneira. Mas
toda a escolha comporta o seu devido risco e, na verdade, se compararmos ambas
as versões, notar-se-á a ausência do valiosíssimo material de apoio que as
primeiras detinham. Se, por um lado, é verdade que o leitor ficará um pouco
mais “a sós” com o poeta, num fértil clima de intimidade literária, por outro a
envolvência dada por olhares mais avisados é reprimida, o que por certo
auxiliaria o leitor mais inexperiente a esboçar passos seguros no seu caminho
de exploração poética.
Em
todo o caso, o livro a que me refiro, na edição antes descrita, reúne não só
uma bastante elucidativa prévia nota à obra que se apresenta como um exultante prefácio
assinado por Ricardo Reis (seguindo a lógica que Pessoa tanto gostava de
imprimir na edição de certos trabalhos, onde heterónimos comentavam outros
heterónimos), uma curiosa entrevista ao autor (a Caeiro, entenda-se) e dois
competentíssimos ensaios assinados por Richard Zenith e Fernando Cabral Martins
(dois dos nomes que na actualidade mais se dedicam ao estudo e ao reagrupamento
do trabalho de Pessoa). Isto, claro está, sem olvidar o principal: os três
volumes poéticos produzidos por Alberto Caeiro – O Guardador de Rebanhos, O
Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos.
O
que dizer de Alberto Caeiro? Além dos dados biográficos directamente saídos do
imaginário de Pessoa? Dizer de um poeta que nasceu em Lisboa no ano de 1889 e
nessa cidade faleceu, tuberculoso, em 1915 é muito pouco... Se não mesmo nada.
Embora Ricardo Reis tenha dado o tom: "Toda a obra [de Alberto Caeiro] fala por
si, com a voz que lhe é própria, e naquela linguagem em que é pensada; quem não
entende, não pode entender, e não há pois que explicar-lhe" (in “Prefácio”).
Ainda assim, nada disso atesta a profundidade da intenção que antecede o acto,
neste caso o poético. Somente que Pessoa era o centro de um universo (íntimo, é
claro) deveras singular.
Sobre
Caeiro, reunindo dados mais concretos, resultantes da observação empírica do
impacto do poeta sobre seus semelhantes e leitores, poder-se-á dizer que é o
heterónimo de Fernando Pessoa mais inculto e, ao mesmo tempo, o que alcança
maior profundidade de significado, embora rejeite sentido racional algum àquilo
que escreveu. Mestre do seu próprio criador, bem como de Ricardo Reis e Álvaro
de Campos, surge como uma espécie de antídoto, ou mera projecção da antítese de
Pessoa, ou até como a figura que o mesmo, secretamente, almejaria incarnar.
Pois para Caeiro, o “grande Libertador” (epígrafe que Reis com bonomia lhe
atribuiu), só existe a realidade que se percepciona, e o tempo é a sua própria
ausência. Isto é, as habituais referências temporais (passado, presente,
futuro) extinguem-se do plano percepcionado para dar origem a uma sensação de
realidade contínua, a cada momento reciclada. Ora, esta iluminada premissa,
deveras inovadora e revolucionária, surge como a base do preparado que visa
extinguir a famigerada “dor de pensar” que tanto assolava Pessoa ortónimo. De
certo modo, dizer-se-á até que a expressão engloba as problemáticas mentais da
maioria dos poetas e que Caeiro surge como um visionário em reino de cegas
gentes. Em termos mais místicos, que certamente deleitariam Pessoa, de igual
modo se aceita uma determinada linhagem messiânica que de Caeiro parece provir.
Ver
o mundo é, assim, um modo de o compreender e de o aceitar. Excertos de tal
ideia, por ser a mesma tão directa e central, são facilmente detectáveis, ainda
que de forma não condensada, ao longo dos versos que nos são apresentados. "Há
metafísica bastante em não pensar" (poema Vº de O Guardador de Rebanhos), pois
pensar "é não compreender", é "estar doente dos olhos", é "a única inocência" de que um Homem se pode munir (poema IIº de O Guardador de Rebanhos). Por essas
mesmas razões, de forma tão célebre Caeiro afirmou: "Não tenho filosofia: tenho
sentidos". Esta rejeição tão pronta (e rude, diga-se) da racionalidade só o
eleva como um sensacionista de excelência, uma vez que só se foca na realidade
captada pelas sensações que possui.
Tal
característica, sui generis, acaba por aproximar o poeta à maior das fontes
catalisadoras do Sensacionismo (corrente literária fundada por Fernando Pessoa
e Mário de Sá-Carneiro): a Natureza. Tanto que acaba por se revelar como um
poeta da mesma e que à mesma se interliga, permanecendo em harmonia com ela
(suas estações, ciclos naturais e elementos que a compõem). O poema antes
citado, o IIº do volume poético mais famoso de Alberto Caeiro, é curiosamente um palco que condensa as
maiorais características da temática do heterónimo em causa, pois também para
esta nova vertente agora anunciada se lhe encontram correspondências: "O meu
olhar é nítido como um girassol" (quase fusão entre poeta e cenário bucólico
que o envolve) e "Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,/ Mas
porque a amo, e amo-a por isso/ Porque quem ama nunca sabe o que ama/ Nem
sabe por que ama, nem o que é amar...". Assim se constata como em Caeiro existe
a clara tendência em sublinhar o interesse pelo “real objecto”, uma vez que,
pegando no exemplo anterior, este simplesmente ama a natureza tal como ela é,
sem pensar em essência ou aparência que lhe possa, erroneamente ou não, assistir.
Assim se expressa um declarado neo-paganismo.
Se
pensarmos exclusivamente neste amor bucólico que Caeiro exprime, é natural que
certas influências possa de súbito acorrer ao leitor, nomeadamente daqueles
que, de igual modo, faziam da contemplação do exterior e da própria vivência um
autêntico canto. E estas referências, invariavelmente, remetem-nos ao universo
de Walt Whitman, o grande bardo americano (retirando, com a devida vénia, as
palavras a João de Mancelos). Contudo, ainda que o canto de Caeiro se revele
simples, directo e impregnado de sensações, seguindo a linha de uma filosofia
muito peculiar que, em certa medida, é libertadora, Whitman é dono de uma
fluidez e espontaneidade ímpares, o que o remete para um patamar bastante
distinto do heterónimo. Ainda assim, é certo que o leitor, se familiarizado
estiver com a poesia de Whitman, amiúde recordará certas tendências e
envolvências do poeta americano nas linhas de Caeiro. De facto, o caso não é
infundado: Caeiro nasceu de Whitman. A influência do americano sobre Pessoa é
real e comprovada e remonta ao tempo que antecede a criação do heterónimo.
Contudo, de forma algo obscura, Pessoa sempre se esforçou por “encobrir” as
provas de tal caso, elevando, por isso, Caeiro a um patamar bem superior do que
aquele em que reconhece Whitman, menos abstrato e real ao mesmo tempo, menos
límpido, menos espiritual, menos complexo. A única vertente partilhada em
comum, sempre que Pessoa tal admitiu, foi somente a opção pelo verso livre. No
entanto, e não obstante estas notáveis argumentações, ainda se torna clara a
diferença entre ambos no meio da sua semelhança. Whitman, sem altercação, é um
autêntico Horácio dos tempos modernos, enquanto Caeiro se revela um mero
seguidor. Inspirado, sem dúvida, e com a sua quota parte de inovação, mas o
continuador de um trabalho maior legado pelo mestre (esse sim) que Whitman
fora. A isto ainda acresce o facto de em
Caeiro subsistir uma certa tristeza, uma doce melancolia e um ténue desânimo,
quase despertença, que originalmente são nativos de Pessoa (no ortónimo são
claramente perceptíveis) e que o mesmo, inconscientemente, projectou na sua
digna criação. Whitman, por seu lado, eleva o seu canto a alturas infindas,
embebido na mais pura das paixões que pela Vida e pelo Homem alguém pode
nutrir.
Mas
que tal confronto de temas, estilos, intenções e concretizações não seja
elemento de relativização de um imaginário poético em detrimento do outro. Se,
como Jorge Luis Borges acertamente afirmou, é impossível louvar um poeta sem
negrir um outro, devo sublinhar a minha crença de que as comparações são,
efectivamente, um veneno para a alma (como noutra ocasião tive a oportunidade
de escrever). Por isso, não se trata aqui de comparar, sequer relativizar,
nomes de tão digno valor; somente apresentar quadros detentores de visíveis
distinções mas, muito naturalmente, ostentadores de inovação e, sob a sua óptica
peculiar, real qualidade. Cada um, Caeiro e Whitman, é o que é; e, não obstante
o laço que os une, valem por si próprios na suprema afirmação de uma
individualidade singular.
A
leitura da obra de Alberto Caeiro, se não fomentada pela interesse que por sua
visão o leitor pode nutrir, pode ser impulsionada pela simplicidade da mesma,
iniciada na perfeita acessibilidade das palavras que a tecem (embora certas
ideias possam exigir algum esforço de decifração, já que é impossível
racionalizar algo que, à partida, não é “racionalizável”). O vocabulário
escolhido, tendo em conta a personagem que Caeiro é, não poderia ser faustoso
ou complexo, naturalmente. Por motivos de coerência, a linguagem é natural,
quase quotidiana, perfeitamente objectiva e dotada de uma grande pobreza
lexical. Acresce a este aspecto a liberdade estrófica (que tanto inspirou
Ricardo Reis, por exemplo) e métrica em versos de ritmo amiúde pausado e lento.
Daqui se extrai, assim, não só o carácter simplista do heterónimo
(paradoxalmente um plano de grande profundidade) como também a sua preferência
pelo concreto e pela ausência de restrições, tanto a nível estético como a
nível do pensamento (que, como já sabemos, é prontamente rejeitado).
O
que dizer, então, de Alberto Caeiro,
agora que alguns parágrafos já se consumiram desde a formulação da pergunta? A
imagem que permanece, além da confirmação que o mesmo serviu de modelo a outros
heterónimos e ao próprio ortónimo, é a de que Pessoa conseguiu a criação de uma
personagem, se tal epígrafe se lhe pode aplicar, que surge como contra-corrente
ao que foi maioritariamente produzido por esse tão notável autor. Um homem simples,
portanto, um perfeito “guardador de rebanhos” que recebe a realidade como ela
é, de forma directa e objectiva, sem tecer qualquer consideração sobre a mesma.
Dotado de uma filosofia bastante peculiar, traduzida em sentidos, molda uma
sábia maneira de compreender o que o rodeia, compreensão essa que, claro está,
se resume a sentir. Por isso, a poesia de Caeiro, branda e segura, detém a
beleza das coisas simples que se não pensam, apenas se contemplam. Sob uma óptica
de análise bem peculiar, poder-se-á dizer que o mesmo assume, em estádio final,
o arquétipo de um viajante pelos caminhos da existência, despretendido e
abnegado, dedicado a percepcionar a realidade de uma forma íntima e
declaradamente pessoal (perdoe o pleonasmo), num regime que a momentos evoca um
certo ascetismo deveras disciplinado.
O
livro encontra-se dedicado à memória de Cesário Verde, poeta que de forma tão
notória vibrou em Fernando Pessoa. Naturalmente, Caeiro tinha de lhe dedicar
uns versos onde pudesse expor o seu sentimento compassivo para com o mal-fadado
poeta. Mas, dedicatórias à parte, não deixa esta de ser uma óptima oportunidade
para todo o leitor que por tal se interesse de mergulhar bem fundo num dos
heterónimos mais famosos de Pessoa, esse grande nome não só do modernismo
português como das letras lusófonas, tomando contacto com um singular
imaginário que se ornamenta de uma beleza simples e profunda, onde cada coisa
brilha por simplesmente ser aquilo que é. Portanto, que dúvidas não sobejem:
como Zenith refere no ensaio publicado neste livro, eis uma "obra aberta como
nenhuma", onde a maior das valências poéticas pulsa, orgulhosamente só, na
visão despretensiosa do mundo e no expurgo do significado racional de todas as
coisas.
Sou um guardador de rebanhos.
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei da verdade e sou feliz.
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