Pasolini, de Abel Ferrara
É talvez uma
das melhores estreias do ano. Pasolini ilustra
as últimas horas de vida do criador italiano, vivido por Willem Dafoe. Em sua
trama há uma reivindicação do Pasolini escritor de obras como Meninos da vida (1955), seu primeiro
romance e a mais acessível literariamente, uma crônica descarnada e portanto
sincera da vida na periferia de Roma depois da II Guerra Mundial, e de A religião de meu tempo; junto a eles
estão Nebulosa, um roteiro dedicado
aos diretores Gian Rocco e Pino Serpi que nunca foi filmado integralmente, Nova York, escrito depois de duas
intensas viagens à cidade estadunidense, e Demasiada
liberdade sexual os converterá em terrorista, compilação de artigos
jornalísticos, ensaios, Quase um
testamento, reflexões publicadas postumamente e a entrevista que concedeu
poucas horas antes de morrer ao jornalista Furio Colombo, de La Stampa, em que diz, “Aspiro a que
olhes ao teu redor e te dês conta da tragédia, qual tragédia (?), a tragédia é
que já não há seres humanos, há máquinas estanhas que chocam-se entre elas” ou “Todo
mundo sabe que eu pago minhas experiências pessoalmente”.
Dafoe vive a
maior parte do ano na Itália. “Mas conheci Pasolini antes, quando Martin
Scorsese me recomendou, como exemplo de liberdade e compromisso, na
pré-produção de A última tentação de
Cristo. Parece-me fundamental recordar que não só foi um cineasta: eu
comecei vendo alguns de seus filmes e rapidamente passei a seus escritos,
complexos e comprometidos. E proféticos. Pasolini segue na batalha: viu vir o
que ocorre hoje com o capitalismo e a asfixia do ser humano como indivíduo, diluído
na sociedade do consumo, e nos avisou. Ferrar me convenceu para encarná-lo
porque em seu roteiro se dava grande importância aos seus últimos textos
críticos e as cartas a Alberto Moravia e a Eduardo di Fillippo”.
“As poucas
pessoas que escreveram a história são as que disseram não – os santos, os
eremitas, mas também os intelectuais – e não os cortesãos e os assistentes dos
cardeais. Para ser eficaz, a rejeição não pode ser pontual, há que ser grande,
total”, dizia Pier Paolo Pasolini, horas antes de sua morte, ainda na entrevista
ao La Stampa. Essa última entrevista
é a perfeita peça de acompanhamento à elegia fragmentária, sensível e poliédrica
que Abel Ferrara dedicou ao artista italiano quando se cumpre quarenta anos de seu brutal assassinato na praia de Ostia.
Pasolini havia acabado de filmar um roteiro de discurso terminal e universal, Saló ou 120 dias de Sodoma (1975), que não
falava tanto do fascismo mas um pesadelo que conjugava um passado com a interiorização
de suas mecânicas numa sociedade do consumo; estava em tempo de iniciar seu
processo de dublagem para o francês. O feroz intelectual se despediu de Furio
Colombo naquela entrevista prometendo-lhe umas notas na manhã seguinte a fim de
amarrar suas declarações. O que apareceu na manhã seguinte foi um cadáver, corroboração
macabra de algumas das palavras do artista: “Com a vida que levo, eu pago um
preço... É como alguém que vive sob o inferno. Mas quando volto – se volto –
vejo outras coisas, mais coisas”.
É fácil
entender por que alguém como Abel Ferrara tem autoridade para considerar-se um
dos possíveis filhos de Pasolini: ambos estão unidos pela vontade de formular
perguntas incômodas desde os lugares de exclusão da normalidade, o poder e o
gosto dominante. Assim mesmo, estava claro que o autor de Vício frenético (1992) não ia fechar-se na cômoda posição da
biografia convencional. O que talvez não estivesse em nenhuma previsão era que
Ferrara marcasse com tanta força, através desse filme, um ponto particular e à
parte sobre as últimas derivas estilísticas e conceituais de sua trajetória.
Pasolini é o filme que o cineasta se mostra
mais sério. Não há enfermidade, nem vontade amarillista
neste retrato; há diálogo sensível com as muitas caras de um poeta provador, um
artista completo, um radical puro. Um ar de fantasmagoria permite harmonizar os
diferentes tons e registros da narração – de recordação à recriação de filmes
por nascer – neste trabalho que não busca medir-se com o mestre mas algo tão difícil
como fazer-lhe justiça com concisão, conhecimento de causa e exemplar
capacidade de compreensão de sua identidade complexa.
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