O inverídico verdadeiro em O amante
Por Alfredo Monte
Marguerite Duras em 1955. Foto Studio Lipnitzki/ Roger-Viollet |
“Nas histórias dos
meus livros que se referem à minha infância, não sei mais o que evitei dizer, o
que disse, acho que falei sobre o amor que dedicamos à nossa mãe, mas não sei
se falei do ódio também e do amor que havia entre todos nós, e do ódio também,
terrível, nessa história comum de ruína e de morte que era a história daquela
família, a história do amor como a história do ódio e que foge ainda à minha
compreensão, é ainda inacessível para mim, escondida nas profundezas da minha
carne, cega como um recém-nascido de um dia. É o limiar onde começa o silêncio.
O que acontece é justamente o silêncio, esse lento trabalho de toda a minha
vida. Ainda estou lá, na frente daquelas crianças possessas, à mesma distância
do mistério. Jamais escrevi, acreditando escrever, jamais amei, acreditando
amar, jamais fiz coisa alguma que não fosse esperar diante da porta fechada.”
Assim, como o nome
da cidade natal da amante, Nevers, desperta o apetite de “saber” do
protagonista em Hiroshima, meu amor,
também uma palavra me despertou o apetite de ler Marguerite Duras (1914-1996).
Na capa da edição brasileira1 de O vice-cônsul aparecia o nome da autora e, embaixo dele, seu
país de origem: Conchinchina (o Vietnã atual). Que palavra pode ser mais
poeticamente evocadora do longínquo, do confim do mundo do que Conchinchina? E
assim volto a uma afirmação que já fiz quanto a J. M. G. Le Clézio (o Nobel
2008): há escritores que não só são bons, mas também tiveram sorte. Nascer na
Conchinchina já torna Duras algo de único.
E ela explorou bem
isso: pode-se dizer que há um núcleo forte de experiências ligadas às condições
do seu nascimento, da sua infância e da sua família. Essas são concretas,
vividamente recordadas, mesmo que alteradas, deformadas… O resto é abstração, é
prolongamento desse despertar para o mundo, o resto é como Nevers e Hiroshima
no filme de Resnais: o que há de concreto é a intimidade do casal, e seus
percursos passionais e memorialísticos, o resto é contorno, é o sombreado que
realça o desenho principal. É o que acontece com o mundo das embaixadas e com a
própria Índia em O vice-cônsul, meu
primeiro contato (feliz primeiro contato, já que se trata de uma de suas
melhores obras) com a obra durasiana, mas ainda longe da Conchinchina, que eu
experimentaria apenas com a leitura de O
amante. Porém, antes, ainda li outro texto belíssimo, traduzido então
por Jorge Bastos, para uma pequena editora, Taurus, numa publicação bilíngue: A doença da morte.
Então o destino (ou
a sincronicidade junguiana) fez a sua parte: devido ao sucesso do livro na
França, lançaram rapidamente O amante por
aqui2; e na esteira, vieram ao mesmo tempo os livros mais recentes
de Duras, como A dor, Emily L., como também suas obras-primas
dos anos 50 e 60 (Moderato Cantabile,
Dez e meia numa noite de verão, Le ravissement de Lol V. Stein,
que deveria ser “O arrebatamento de Lol V. Stein” e virou por aqui O deslumbramento) e seus livros de outra
fase, “diferentes”, na sua fatura mais tradicional (O marinheiro de Gibraltar, Os
pequenos cavalos da Tarquínia)…
Uma das coisas mais
deslumbrantes de O amante é
a lição que Duras dá de como tratar o sexo literariamente. Nada de descrições
“eróticas”. A cena em que ela, aos 15 anos e meio, acompanha pela primeira vez
seu amante chinês à garçonnière dele,
em Saigon, e perde a virgindade, é um primor, um dos momentos mais
bem escritos da literatura do século XX:
“O ruído da cidade
é intenso, na lembrança é o som de um filme alto demais, ensurdecedor.
Lembro-me bem, o quarto está escuro, não falamos, ele está cercado pelo rumor
contínuo da cidade, está situado na cidade, numa rua movimentada da
cidade. As janelas não têm vidros, só cortinas e persianas. Nas
cortinas as sombras das pessoas que passam ao sol na calçada. Multidões
sempre enormes. As sombras regularmente estriadas pelas frestas das
persianas. Os tamancos de madeira na calçada martelam minha cabeça, as vozes
são estridentes, o chinês é uma língua gritada como sempre imagino serem
as línguas dos desertos, é uma língua incrivelmente estrangeira.
Lá fora o dia chega
ao fim, percebe-se pelo ruído das vozes e o aumento das sombras que passam,
cada vez mais misturados. É um bairro de prazer que vive seu auge à
noite. E a noite começa agora, com o pôr-do-sol.
A cama está
separada da cidade pelas persianas de treliça, pela cortina de algodão. Nenhum
material resistente nos separa das outras pessoas. Quanto a elas, ignoram
nossa existência. Percebemos alguma coisa das suas vidas, o conjunto das suas
vozes, dos seus movimentos, como uma sirene que lançasse um grito
entrecortado, triste, sem eco.
Chegam até o quarto
cheiros de caramelo, de amendoim torrado, sopa chinesa, carne assada,
ervas, jasmim, poeira, incenso, carvão vegetal, o carvão aqui é
transportado em cestos, vendido nas ruas, o cheiro do bairro é o das aldeias do
interior, da floresta (…)
(…) O ruído da
cidade está muito próximo, tão perto que o ouvimos ressoar na madeira das
persianas. É como se as pessoas atravessassem o quarto. Acaricio o corpo
dele em meio a esse ruído, a essa movimentação. O mar, a imensidão que reflui,
se afasta, volta. Eu lhe pedira que fizesse mais uma vez e mais outra. Que me
fizesse aquilo. E ele o fizera. Fizera-o em meio à untuosidade do sangue.
E foi mesmo como morrer. Foi como morrer disso (…) Ficamos assim abraçados,
gemendo por entre o clamor da cidade lá fora. Ainda o ouvíamos. E depois não o
ouvíamos mais (…) Pelas persianas a noite chegou. O barulho é maior. Mais
estridente, menos surdo. Lampiões avermelhados se acendem.
Saímos da
garçonnière (…) Na rua a multidão segue em todas as direções, lenta ou
rápida, abre passagem, sarnenta como os cães abandonados, cega como os
mendigos, uma multidão da China, vejo-a ainda nas imagens de prosperidade de
hoje, no modo como caminham todos juntos sem jamais demonstrar
impaciência, aquele modo de estar só no meio da multidão, sem alegria, sem tristeza,
sem curiosidade, andando sem parecer ir a lugar algum , sem intenção de
ir, mas apenas avançando, por aqui e não por ali, isolados e no
meio do povo, jamais sozinhos de verdade, sempre sozinhos no meio da
multidão…”
II
Pensando no sucesso
que O amante fez ao ser
lançado, em 1984, me pergunto: as pessoas acharam que estavam lendo um “relato baseado
numa historia verídica”? Seria deliciosamente irônico saber que sim, uma
vez que não há nada mais falso do que ler o livro por essa perspectiva. Não que
Duras tenha inventado nada (embora também possa haver uma boa dose de invenção,
ou pelo menos de ressignificação), é que, não obstante o exotismo da situação
(moça francesa de quinze anos e meio, pobretona, em 1929 inicia
relacionamento de teúda e mantéuda com um chinês doze anos mais velho e rico, no
que era então a Conchinchina antes de ser o atual Vietnã), esse aspecto é menos
importante do que o desfile de obsessões da autora na sua Macronarrativa (isto
é, na linha-mestra que percorre várias obras).
Esgotada a edição em capa dura para o livro O amante, a Cosac Naify incluiu o romance no novo projeto gráfico como edição de bolso. |
O ser-escritora,
frisado em diversos pontos do relato, é o que conta, e essa constelação
de imagens primordiais (dos parentes próximos paradigmáticos, como a mãe e
os irmãos; a travessia iniciática da balsa; a mulher fatal da embaixada; o
carrão preto; o amante exótico) são as que povoam, mais do que um universo
biográfico, um universo autoral (e por isso é totalmente pertinente, apesar de
velha, essa discussão entre romance e depoimento biográfico): “Na
balsa, ao lado do ônibus, está uma grande limusine preta, o motorista de libré
de algodão branco. Sim, é o grande carro fúnebre dos meus livros. É o
Morris Léon-Bollée. O Lancia preto da embaixada da França
em Calcutá ainda não estreou na literatura”. Isso interessaria a um leitor
do “relato biográfico”? Para ele, uma passagem acidental; para um
iniciado nos textos de Duras, a revelação de que o aparentemente
simples é uma armadilha. Na edição da Cosac Naify há um ensaio de
Leyla Perrone-Moisés, “A imagem absoluta”, no qual se faz referência ao
trabalho imenso de escrita do texto aparentemente muito “legível” e
“acessível” (em se tratando de Duras, é claro) de O amante (que, nesse ponto, lembra
o sucesso de um outro texto igualmente complexo e desafiante, e no entanto
“fácil”: A hora da estrela): “Quero escrever.
Já disse a minha mãe: o que eu quero é escrever”… “Respondi que meu maior
desejo era escrever, nada mais do que isso, nada”.
E é isso que
determina o belo jogo de linguagem, em que uma primeira pessoa (“eu”, a velha
escritora, o rosto destruído) relata-se em terceira pessoa (“ela”, a menina
cujas experiências de prazer e dor já estavam inscritas na sina do seu corpo
antes de ela vivê-las), de um modo muito mais complexo e caleidoscópico do que
simplesmente passar de primeira para terceira pessoa, do que estar na
Conchinchina, e depois na França.
“Eu” tenho um filho e desse filho tenho uma
fotografia, onde ele aparece com determinada expressão e postura (“Encontrei
uma fotografia de meu filho quando ele tinha vinte anos. Está na Califórnia,
com suas amigas Erika e Elisabeth Lennard. É tão magro, magro demais, parece
também um ugandense branco. Acho seu sorriso arrogante, um pouco zombeteiro.
Quis parecer um jovem vagabundo. Agrada-lhe ser assim, pobre, com jeito de
pobre, a magreza desajeitada da juventude”). “Ela” está na balsa do rio
Mekong, aos 15 anos e meio, e está para atravessar um rito de passagem, é o
último momento antes de “entrar” na obra durasiana. Só que a vida não forneceu
uma fotografia dessa imagem da moça na balsa (a fotografia do filho é o que há
de mais próximo, com as mil associações que podem ser feitas: “Essa fotografia
é a que mais se parece com a que não foi tirada da moça da balsa (...) Durante
essa travessia, a imagem poderia definir-se, destacar-se do conjunto. Ela poderia
ter existido, uma fotografia poderia ter sido tirada… Mas não foi… A fotografia
só seria tirada se fosse possível prever a importância desse acontecimento em
minha vida, aquela travessia do rio… Por isso essa imagem, e nem podia ser de
outro modo, não existe. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, não foi
registrada. A esse fato de não ter existido ela deve sua virtude, a de
representar um absoluto, de ser seu próprio autor”.
Ora, O amante se propõe a ser a
fotografia em palavras que substitui a imagem que não foi fixada. Mas é uma
travessia de rio, lembrem-se, e essas palavras formarão uma imagem fluida, autotransformadoras,
metamorfoseantes: o ódio-amor pela mãe, os irmãos oprimidos e desesperados, mas
crianças risonhas, numa ótica que se corrige a todo instante, e que nos instila
a cautela com a exatidão desses fatos contados (“Eu me esqueço de tudo, me
esqueci de dizer isso, que éramos crianças risonhas, meu irmão mais novo e eu,
que ríamos até perder o fôlego, a vida”); o amante que não é amado (no entanto,
por que essa dor com o afastamento definitivo?, a viagem de navio, ao mesmo
tempo libertadora, para a França):
“Não havia vento e
a música espalhou-se por todo o navio escuro, como uma injunção do céu, vinda
não se sabia de onde, como uma ordem de Deus de teor ignorado. E a jovem
levantou-se como se fosse também se matar, jogar-se por sua vez ao mar, e
depois ela chorou porque se lembrou daquele homem de Cholen e subitamente não
tinha certeza de não tê-lo amado com um amor que não havia percebido porque se
perdera na história como a água na areia e que só agora encontrava, no momento
em que a música era lançada através do mar.”
Ou só “agora”,
quando o relato está sendo escrito, criando aquela música no mar que
ressignifica todo o amor. Pois já não lêramos antes: “Durante a viagem, na
travessia desse oceano (portanto, temos duas travessias iniciáticas pelas
águas), tarde da noite, alguém morreu. Ela não sabe muito bem se foi essa
viagem ou em outra qualquer. Algumas pessoas jogavam cartas no bar da primeira
classe, entre os jogadores estava um jovem e, num dado momento, esse jovem, sem
uma palavra, colocou as cartas na mesa, saiu do bar, atravessou correndo o
convés e jogou-se ao mar (…) Não, agora escrevendo, ela não vê o navio mas outro
lugar, onde ouviu essa história. Foi em Sadec. O filho do administrador de
Sadec. Ela o conhecia, ele estudava também no liceu de Saigon. Ela se lembra, muito
alto, rosto suave, moreno, óculos com aros de tartaruga. Nada foi encontrado na
cabine, nem uma carta. A idade ficou na memória, apavorante, a mesma, dezessete
anos. O navio tinha partido afinal ao nascer do sol. Isso era o mais terrível.
O nascer do sol, o mar vazio, e a decisão de abandonar a busca…”
Notas:
1 A tradução de Fernando Py foi publicada pela
Francisco Alves.
2 Em tradução de Aulyde Soares Rodrigues (Nova
Fronteira). Em anos mais recentes, ele ganhou outra versão: a de Denise
Bottmann (Cosac Naify).
Comentários