O Balzac brasileiro de um húngaro
Por Alfredo Monte
A 4ª. edição de Balzac e A Comédia Humana1,
de Paulo Rónai (1907-1992) reapareceu na esteira do relançamento dos 17 volumes
de traduções da obra balzaquiana que ele coordenou nos anos 1940-50. Há todo um
charme recôndito no pequeno volume, no qual o húngaro, que viveu no Brasil boa
parte da sua existência, destila sua íntima convivência com os textos do autor
de A Comédia Humana e nos faz relevar
os aspectos datados, quiçá superados, das suas análises, principalmente as
literárias, pois se o texto de Rónai é um manancial de informações valiosas e
de conhecimento de primeira mão, por vezes soa esquemático demais, professoral
e “quadradinho” (por exemplo, nele se fala em “qualidades típicas do
espírito francês”, em “ilustre gentil-homem”— e ele não está falando de um
personagem de Balzac, não, mas de um estudioso de sua obra!; há também
afirmações genéricas do tipo: “A Comédia Humana presta-se a todas as
interpretações”).
Como atualmente
constata-se uma ausência embaraçosa de textos que tenham clareza didática e que
ajudem o leitor comum a atravessar certas obras-selvas, é provável que esse “defeito”
evidenciado pelo transcorrer do tempo venha a ser tomado como uma qualidade
inesperada (não se pode esquecer que os textos tiveram como base conferências
nas quais Rónai se esforçava em aproximar a obra balzaquiana do leitor
brasileiro da época).
A primeira seção, “O
mundo de Balzac” enfatiza a vitalidade e permanência da Comédia naqueles meados
do século XX, pleno pós-Segunda Guerra; e enfatiza também o que Rónai toma (a
meu ver, discutivelmente) como o maior achado do autor francês: “Foi ele quem
primeiro teve a ideia genial de basear a literatura de ficção em estudos e
pesquisas, aplicando à sociedade de seu próprio tempo o método de documentação
com que Walter Scott, em seus romances históricos, transfigurava o passado”.
Mais aceitável é
essa outra consideração: “A volta sistemática das mesmas personagens dentro de
diversos romances era, em verdade, invenção originalíssima e de grande
alcance”, mas a sequência já é duvidosa: Balzac pretendeu “eliminar a maior
imperfeição inerente ao gênero, qual seja, a incapacidade de dar uma ilusão
completa da realidade”. Que Balzac achasse que havia essa “imperfeição inerente
ao gênero”, tudo bem. Seu crítico nunca poderia encampar essa visão basicamente
distorcida do alcance de um romance.
Como profundo
conhecedor até da genética textual balzaquiana, o organizador da Comédia Humana brasileira nos
possibilita acompanhar a reescritura atordoante que foi necessária para a
unificação da obra, após a decisão do seu criador de ligar entre si os relatos
mais diversos (Rónai também discute a falta de “uma ordem cronológica de
leitura”, “o que se poderia julgar uma fraqueza de sua obra”, no sentido da
comodidade dos leitores!!??; felizmente, reconhece que Balzac não levou a cabo
tal ordenação intencionalmente, e que essa “lacuna” obedece a um critério
artístico superior do que a mera “comodidade dos leitores”): “no vasto edifício
de A Comédia Humana quase tudo tem
significação, até as irregularidades, as assimetrias, as aparentes
inconsequências, todas elas subordinadas ao fim principal, que consiste em dar
uma imagem tão completa e fiel quanto possível da complexa realidade moderna.” Bem
que o tom poderia não soar a quase uma
justificação.
O restante da seção
se preocupa em elencar alguns “enigmas” na arquitetura da vasta construção e
mencionar alguns de seus investigadores, que mais do que balzaquianos parecem
sair do mundo do Flaubert de Bouvard e
Pécuchet.
Não se pode
esquecer que Rónai também analisa um romance não tão conhecido como Ilusões Perdidas, Eugénie Grandet ou Pai
Goriot, e que faz parte do primeiro volume: Memórias
de duas jovens esposas, para exemplificar o método de trabalho balzaquiano,
aquele vezo obsessivo de estar sempre anunciando projetos em sua
Correspondência, e as suas sucessivas transformações. É a parte mais
interessante de “O mundo de Balzac”.
Gosto muito da
segunda seção, “O Pai Goriot dentro da literatura universal”, talvez pelo tanto
que goste do romance, mesmo que ele comece com um clichê de doer (por ser
clichê e pelo preconceito social): “A costureirinha que, mal lidas vinte
páginas, depõe bocejando A Educação Sentimental
verte abundantes lágrimas no fim de um romance de Delly, velozmente devorado”.
Mas o fato é que
ele expõe de forma cabal a importância estratégica da história de Rastignac
para se compreender as leis psicológicas e sociais que regem o mundo da Comédia. É seu livro-síntese, sua chave.
E explora, ademais,
o leitmotiv “matar o mandarim”,
fazendo uma genealogia das obras que trataram o assunto, de uma forma erudita,
porém nada preciosista ou acadêmica, uma aula modelar de historicismo
literário, que roça a literatura comparada de uma forma muito saborosa. A meu
ver, é o ponto alto de “Balzac e A Comédia Humana”.
Apesar de achar um
pouco ultrapassada e rígida as distinções entre “romances” e “contos longos” de
A Comédia Humana, o interesse maior
de “Balzac contista”, a terceira seção, está na útil distinção — que só um
especialista na obra completa poderia fazer — entre as duas classificações que
se pode fazer desses textos mais curtos, os independentes e os “explicativos” (“isto
é, que esclarecem outras obras ou por estas se esclarecem”). E nos dá a pista
desses últimos, num belo roteiro para quem quer se aventurar pela leitura do
conjunto, pois são os textos mais difíceis de avaliar. Nunca é demais lembrar
que o primeiro volume se inicia justamente com dois desses “contos”, e, aliás,
admiráveis: Ao Chat-qui-pelote & O baile de Sceaux (concordo com Rónai,
principalmente com relação ao segundo, que os finais dessa linha de textos
insertos na Comédia são meio abruptos
e apressados).
Acho que essa seção
é uma grande contribuição ao conhecimento didático, por assim dizer, da obra de
Balzac, independentemente da discussão de gêneros literários.
Não aprecio muito o
tom justificativo que retorna em “O estilo de Balzac”, a quarta seção: será que
um gênio desses precisa de escusas? Pois é, dizia-se (e Proust o afirmou muitas
vezes) que Balzac escrevia mal. E daí? Isso não significa mais nada. Na
verdade, Rónai chegará à conclusão óbvia: “O nosso autor, como os grandes
escritores antigos, exige o sacrifício de certos hábitos de leitura,
compensando-a com um rico, intenso conteúdo humano, sempre atual”.
Gosto é das
amostras do Balzac anterior às obras da Comédia,
e que perpetrou trechos como este: “A condessa acorreu com a velocidade de um
milhafre”. E como amostra de que a prosa de ficção é muito mais do que um
estilo totalmente trabalhado, ele nos dá trechos deliciosamente cafonas que
persistem em obras do grande ciclo, como Modesta
Mignon, onde uma moça está “com o nariz aberto ao perfume da flor azul do
ideal”.
E gosto
especialmente da técnica utilizada por Rónai para mostrar como Balzac operava
(por acréscimos), através de preciosas análises de trechos (que considero outro
ponto alto do livro). Ele também acaba nos mostrando que o autor de La rabouilleuse é, como Victor Hugo, um
praticante do narrador asfixiante: “Desde o início, ele faz sentir que já sabe
toda a história e está apenas procurando a melhor maneira para comunicá-la ao
leitor”. Como exemplo, justamente um trecho daquele romance, traduzido por aqui
como Um conchego de solteirão:
“Jean-Jacques
Rouget, a quem o pai acabara controlando com severidade ao reconhecer-lhe a
estupidez, ficou solteiro por graves razões, cuja explicação constitui parte importante desta história. Seu
celibato foi em parte causado por culpa do doutor, como se verá mais tarde. Agora é necessário examinar os efeitos da
vingança exercida pelo pai na pessoa de uma filha que não considerava sua e que,
no entanto, podem acreditá-lo, lhe
pertencia legitimamente.”
Outro ponto importante
levantado por Rónai nessa seção é a terminologia inovadora utilizada por Balzac,
e tomada de empréstimo às ciências naturais, muito em voga àquela altura, o que
sublinha — até estilisticamente — o lado enciclopédico que o romance assumiria
como uma de suas vocações naturais.
Mas para o seu
estudioso há o reverso: “O estilo de Balzac falando em seu próprio nome é
justamente aquele em que se censura o maior número de falhas: a
heterogeneidade, as pretensões a cientista e historiador, a banalidade ou a
incongruências das imagens, a exuberância, às vezes caótica”. Será que podemos,
hoje, subscrever uma passagem dessas (a qual, diga-se de passagem, reverbera em
outras, do tipo: “Muito provavelmente o melhor estilo é aquele que não se
percebe”)?
Ao fim e ao cabo
todo esse pró-e-contra se mostra estéril e irrisório justamente porque Rónai dá
um golpe baixo: transcreve uma imensa passagem (que ocupa quase três páginas)
de O Primo Pons, que liquida a
discussão, de tão bela e expressiva que é.
Quanto à quinta
seção, “Paris, personagem de Balzac”, é prejudicada por certo tom moralista
convencional (“A Paris de Balzac, para dizer a verdade, pouco tem de idílico. O
seu brilho lembra o da chama que atrai os insetos noturnos para queimá-los. Se
os insetos pudessem refletir! Se olhassem um instante sequer para o chão, cheio
de asas queimadas, de corpos carbonizados de seus semelhantes! Eles, porém, só
sabem olhar para a luz, só têm uma vontade, chegarem-se a ela o mais possível,
aquecerem-se a ela”, dá para acreditar que na seção anterior ele analisou com
precisão as pérolas de breguice do estilo do autor francês?) a impregnar o
levantamento (numérico, inclusive) da presença da metrópole na Comédia. Mesmo assim, ocorre um fenômeno
notável sobre o qual seria um pecado passar em branco: de repente, Rónai se
investe de um espírito de prosador à Balzac, veja-se:
“Se Londres a
igualava no número dos habitantes e a superava como empório comercial,
ficava-lhe atrás no colorido, nas atrações, no movimento de estrangeiros. Roma,
centro perene do catolicismo, ainda não era capital da Itália e, na atmosfera
de suas ruas, ao cheiro do incenso misturava-se o mofo das glórias passadas.
Madri definhava uma lenta decadência, Berlim era apenas o centro de um pequeno
estado prussiano, a capital dos czares ficava longe, atrás do nevoeiro, no meio
do deserto. Viena, sim, que reluzia, abrilhantada pela auréola de uma
esplêndida corte, ostentando uma beleza alegre e harmoniosa; mas dava a
impressão artística de uma joia sem comunicar o espanto de uma metrópole
gigantesca…”
Além da história
paradigmática de Rastignac, há outra fábula exemplar da trituração de ideais e
individualidades executada em (e por) Paris: a do primo Pons e de seu amigo
Schmucke, humilhados e espoliados, e que são o epítome do seguinte axioma: “Frequentemente
escolhe uma das figuras mais inexpressivas, mais anódinas, que parecem levar a
vida mais monótona, que são a negação de todo o romanesco, uma personagem
totalmente desinteressante — como se tivesse apostado demonstrar-nos a existência
de paixões e dramas sob qualquer disfarce”.
Até essa altura
temos cinco seções sólidas e, no mínimo, úteis, com pequenos senões ou detalhes
que nos soam hoje datados. Há um epílogo bonito, também, com forte sabor de reminiscência
da infância e da juventude, “À maneira de epílogo: adeus a Balzac”, em que ele
historia suas relações pessoais com o fenomenal criador da Comédia Humana de uma maneira que parece desapaixonada, mas só na
superfície, pois é de tanto que ama Balzac e sua obra e de tanto que a conhece
que ficou esse “ar” de coisa já despojada e simples que nem parece ser
resultado de anos de leituras, pesquisas, estudos e reflexões. Parece uma coisa
dada (inteligentemente, a nova edição complementou-a e lhe deu uma nova
profundidade com a inclusão do texto sobre a história da edição brasileira da Comédia Humana).
Todavia, é indefensável
a sexta parte, “O Brasil na obra e na vida de Balzac”, a não ser como
curiosidade. Novamente, registre-se o assombroso conhecimento de firulas e
detalhes do conjunto de 89 romances e contos, mas é muito tiro para caçar
moscas e formigas, para nos dar as parcas referências ao nosso país, e um único
personagem. Lendo, tive a mesma aflição e sensação de inutilidade de quando li
alguns dos ensaios de Cultura &
Imperialismo, de Edward W. Said, aqueles em que queria, por exemplo,
vincular as existências das heroínas de Jane Austen com o sofrimento dos
jamaicanos. São páginas e páginas, em Rónai e Said (com a crucial diferença
que, no segundo, há a ambição de uma desconstrução ideológica muito
consciente), a nos escancarar um grande vazio. Só porque Balzac, numa
carta, quando está frustrado com o fracasso de sua carreira, aventa a
possibilidade de fugir para o Brasil, insinuam-se mundos e fundos.
O que a seção
registra, muito provavelmente, é a gratidão do autor húngaro pelo país que o
acolheu.
Felizmente, assim
como o efeito conjunto de A Comédia
Humana absorve, sem maiores problemas, a moça com o nariz aberto ao perfume
da flor azul do ideal, Balzac e A Comédia
Humana absorve essa dispensável seção. Ao comentar (no texto em apêndice) a
presença brasileira de (e não a presença do Brasil em) Balzac, ele diz: “E
talvez me seja permitido incluir entre os subprodutos dessa renascença balzaquiana
mais dois livros de minha autoria: Balzac
e A Comédia Humana e Um Romance de
Balzac: A Pele de Onagro…” Modéstia pura: longe de ser apenas um
subproduto, seu livro tornou-se um pequeno clássico que resiste há 66
anos, tempo incomensurável para qualquer estudo crítico.
Notas:
1 Os seis ensaios (e mais um epílogo proustiano)
que são o cerne do volume foram publicados em 1947, para acompanhar a
monumental edição de A Comédia Humana,
então levada a cabo pela editora Globo [o empreendimento foi de 1946 a 1955],
para a qual Rónai também escrevera uma biografia sucinta e exemplar de Balzac. Na
edição atual, foi incluído um texto do próprio Rónai, do final dos anos 1980,
onde conta a história da lendária edição em 17 volumes. O volume ainda é
enriquecido com índices e listas bibliográficas, funcionando como uma homenagem
a Rónai. Nada mais merecido. Permito-me somente observar que A Comédia Humana acaba ocupando um papel
coadjuvante na coisa toda.
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