Noé, de Darren Aronofsky



Há dois motivos possíveis que podem justificar a corrida do público brasileiro para ver este filme: estatisticamente ainda somos um dos povos mais religiosos do mundo, se não formos o mais. Mesmo a Igreja Católica tendo estado cada vez mais a perder fiéis à banca rota, não se verifica um abandono da religião, mas uma debanda para correntes até mais retrógradas e conservadoras com é caso das Igrejas Evangélicas. As duas presenças religiosas têm apreço pelo mito de fundação da comunidade humana tal como narram os livros que compõem o Antigo Testamento da Bíblia. Se os desse grupo conseguissem se despir do véu ideológico que os cegam, veriam que bem, o filme de Darren Aronofsky não parece ter tanto interesse assim em se manter fiel ao relato bíblico.

Embora todos os elementos do Gênesis aí se mostrem. O diretor, aliás, aposta na ideia do pecado que resultou na expulsão do casal mítico do paraíso para alinhavar toda sua história, e preserva outras situações como a presença dos gigantes, espécie de anjos caídos, e toda a história do dilúvio, desde a construção da arca, ao acomodamento de todos os bichos da terra, ao envio das verificações pelo fim das chuvas e a descoberta de terra firme, quando, enfim, a família de Noé recomeçaria o trabalho de povoamento da terra. Permita-me já aqui um adendo sobre uma feiura do filme: apostar na imagem dos gigantes em protótipos de descendentes do Homem de Pedra. Perdão o trocadilho, mas essa derrapagem de Aronofsky não cabe perdão.

Os telespectadores (aqueles muito religiosos) ainda poderão se frustrar porque, mesmo sabendo que no livro bíblico, por exemplo, Deus é praticamente uma entidade que convive entre a sua criação, no filme, em nenhum momento, é visível sua atuação. Todo o tempo, o divino é mero produto da imaginação fértil de Noé, que dispõe, digamos, de uma sensibilidade um tanto aguçada para conseguir visualizar determinados sinais atribuídos como avisos de Deus sobre a destruição da humanidade.

A escolha me parece acertada; seria duro ter de engolir um velho de barbas longas ou coisa do gênero a papear com Noé para cima e para baixo. Esse exercício de imaginação criadora retira, inclusive, a posição de Deus do centro de todas as coisas (mesmo sendo esta a postura admitida por Noé e os seus seguidores) para dar vez ao homem. O homem constrói e destrói – esse, aliás, é o lema do opositor de Noé que, ironicamente, consegue contra tudo e contra todos garantir uma vaga na arca para a travessia da quarentena de chuva sendo responsável por ampliar as cenas de ação próximo do fim da narrativa.

O que não parece acertado é querer aproximar o mito cada vez mais da razão humana e ser traído pela própria razão da representação: poxa, Noé de jeans tal como um caubói do interior dos Estados Unidos e o restante do elenco todo de cara artificial é o erro mais grotesco do filme; tão grotesco que reduz as chances de ser um grande filme para ser uma brincadeirinha cinematográfica de gosto duvidoso. Darren zomba da relação ficção e realidade na pior das ocasiões ou na ocasião indevida.

O que salvará nesse tempo em que todos se apresentam com roupas e maquiagem ajustadas a sua situação, são duas coisas: primeiro, a brilhante atuação de Jennifer Connelly, que no filme vive a mulher de Noé e o próprio Russell Crowe que, a seu modo, consegue compor outra imagem do criador da arca. O que sustenta a tensão da narrativa é justamente o desempenho dessas duas personagens. Não fosse isso, o filme seria um fiasco.

Agora, quando digo que o filme foge ao menos das interpretações rasteiras perquiridas pelo discurso religioso, estou pensando a partir desse pacto entre realidade e ficção mais ou menos bem pensado pelo diretor, sobre a possibilidade de rompimento com a dualidade sexual. O texto bíblico, por sinal, abre margem para essa leitura. Um dois filhos de Noé, por exemplo, mesmo tentando com todas as forças adquirir para si uma mulher, tal como consegue seu irmão ainda na infância quando a família salva a pequena Ila na trajetória para encontro com Matusalém; do mesmo modo, abre-se essa possibilidade com o nascimento das gêmeas, netas de Noé. O discurso, agora proferido pelo homem, do crescei e multiplicai, é um tiro no pé. Isso porque tomando por base a própria lógica de Aronofsky isso é inviável na situação em questão. De certo modo, o diretor interfere no plano divino ao inserir a possibilidade de outras formas de sexualidade.

O mesmo acontece com o suposto caráter divino atribuído a Noé; não é por ser um homem correto que ele constrói o projeto da arca. É por ser um homem dotado do senso de observação, da razão e da astúcia – não são raros os momentos em que a personagem observa de dentro da comunidade humana sua autodestruição e associa a presença dessa situação aos sinais que o persegue. Além dessa intervenção, gosto da forma como Aronofsky critica indiretamente determinadas posições, como o fanatismo religioso ou a posição do homem diante da catástrofe final ou ainda a formação da machismo. Em grande parte, o cineasta discorda da utopia da regeneração: uma vez perdido, dificilmente o homem encontraria um retorno. E se a crença numa meta é capaz de grandes feitos (a arca é o grande feito de uma crença), ela também corrompe a humanidade e cega de uma forma que não vê nada além dela própria. É o caso de Noé, obcecado por dar conta do projeto de salvação a vida, esquece-se que mundo não gira em torno de seu umbigo.

Por fim, não sobre muita coisa de divino a não ser o roteiro bíblico. Embora o diretor não tenha alcançado fazer do filme um ensaio sobre o elo perdido entre criador e a criatura e a incapacidade dos dois em alcançar alguma comunicação que valha, o filme estabelece pequenas indagações. Quis Aronofsky fazer um blockbuster com ideias. Não conseguiu, é fato. Mas, esboçou. Quem sabe numa próxima.


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