Mãe Pobre (Trabalho Poético), de Carlos de Oliveira
Por Pedro Belo Clara
Cumprindo
a promessa que no anterior artigo efectuei junto de si, estimado leitor, venho
na presente publicação apresentar o segundo livro de poesia editado por Carlos
de Oliveira: Mãe Pobre.
Lançado
em 1945, num ano de significativo frémito mundial, o trabalho remete-nos aos
duros tempos vividos num Portugal sufocado pelos negrumes do regime fascista
então vigente, de certa forma isolado dos grandes palcos de acção que no resto
da Europa tinham o seu lugar. Ainda que os ecos do conflito mundial, sua
resolução e consequentes alterações nas economias e nas geografias à época
habituais não cessassem de vibrar junto da lusa nação, o poeta optou por olhar
para dentro e realizar um trabalho impregnado de revolta, denúncia e desejo de
amanhecer.
Longe
de ser um livro meramente interventivo, é, em acréscimo, um livro de
sensibilização, cujas linhas se tecem no intuito de sublinhar veemente a
necessidade de iluminar uma nação e um povo amordaçado e cada vez mais
mergulhado numa escuridão sem fim. Principalmente, pela pobreza que ainda
imperava no território junto dos aglomerados rurais e naturalmente menos
favorecidos. Pois, em detrimento do enfoque de tramas políticas em abertas e
lacerantes críticas, dos poemas deste livro se extraem os “gritos” que se
impunham ser lançados na esperança de que a sua estridência, ainda que algo
contida (note-se, por exemplo, a carência de exclamações), vibrasse junto
daqueles que necessitariam de despertar ou, simplesmente, de serem incitados à
acção.
Os
“gritos” são os de uma “mãe pobre”. Ou os de um poeta que aclama à sua pátria
maternal, condoído de a ver tão... pobre. Não se estranha, por isso, que no
seio de tamanho sentir, de tamanha paixão justificada pelo mais alto dos ideais,
o poema que abre a obra se intitule “Coração”. Devo ressalvar que, neste
período, o leitor já se encontra algo familiarizado com o sumariado estilo
poético de Carlos de Oliveira: limpo; depurado; luminoso, de início; com
preferência pela rima, embora impregnado de inovações modernistas; de linguagem
amiúde clara e simples – e isto de um modo geral, está claro. Naturalmente,
sabendo do gosto do autor pela divisão dos seus poemas, o que de abertura serve
a esta obra apresenta-se como um quarteto capaz de afinar o tom do restante
trabalho. Note-se, contudo, o abandono da numeração romana em detrimento da
árabe na apresentação das partes do poema, prova de que os resquícios
classicistas seriam de vez arredados.
Mãe pobre, edição limitada, publicada em 1945 e considerada um caso singular de popularismo neorrealista articulado com uma dimensão épica e trágica de matriz romântica e neorromântica. |
Neste
poema, como dizíamos, o autor coloca-se na pele dessa “mãe” de "tosca e rude
poesia", senhora de versos que "são corações fechados" e que sem reservas se
assume parte integrante dessa casta oprimida, "os humilhados /cristos desta
paixão". São estes, no fundo, os visados em toda a obra. Compreensivelmente,
pelo retrato de uma realidade ou condição se denuncia a sombra que os envolve,
mas de igual modo se ressalva e eleva a virtude que não cessa: "quanto mais nos
gelar a frialdade /(…) /mais e mais, génio do povo, /tu cantarás em mim". Aqui
se identifica uma das valências (ou características, se preferir) mais
interessantes e luminosas deste livro: a capacidade de transmutar a adversidade
num alimento do ímpeto, da crença, da força. Mesmo que a abnegação tente
imperar pela fímbria dos dias e o sacrifício individual e colectivo, renovado a
cada amanhecer, seja um acto tão comum quanto a dor por essa gente sentida ("Se
quiseres, ó morte, /abro-te os lençóis /e dou-te a minha cama" - 3), a
esperança teima permanecer invicta: "onde houver um sonho /para ser sonhado /está meu coração".
Sonho:
a magnífica substância que, segundo a eternas palavras de Gedeão, "comanda a
vida". Será esse o elemento derradeiro? A crucial carência? Antes a raiz de
toda a sublevação! Mas tal, por si só, apagará os naturais princípios de
capitulação? O caminho, de tão longo, acaba por invariavelmente fatigar o
caminhante. E a sua maior provação ainda não conheceu a hora de se manifestar.
De facto, o lamento é expressado: «Há tanto já que chove" (4). De modo irreversível,
somente atenuante, a tentação adensa-se: "Vão-me doendo os olhos já de serem
tristes". A última parte deste primeiro poema é composta de dúvidas e de
incertas premissas. E os próximos só aparentam diluir a tal força esperançosa
que tão inocentemente, talvez até jovialmente, fora antes cantada, elevada,
consubstanciada. No seu término, a angústia: "pergunto /se é a morte ou a
manhã que espero". Tal sentimento, apenas de ponte serve para o futuro imediato
apresentado na obra: "Trago notícias da fome". Pois, em “O Viandante”, poema do
qual se transcreveu a passagem anterior, a toada mantém-se, agora com um
sujeito principal em completa evidência: «e tu, miséria, persistes"; "e tu,
miséria, ficaste" ; "só tu, miséria, nos velas". Os retratos vão-se compondo de uma pungência
habilmente definida e notoriamente crescente, ornados, de forma posterior, de
um lirismo bem tradicional, ao jeito de uma canção popular, existindo até, aqui
e acolá, alguns polvilhos de regionalismo. Mas ainda que imerso na negra maré
do desânimo, a profunda humanidade do poeta, luminosa e redentora, tende a
emergir e a se consolidar como derradeira ilha de salvação... Mesmo que o
ansiado desfecho se verifique para além do seu tempo de vida e todo o esforço
de mudança seja apenas legado ou extensão para outros dias que se querem
amanhecidos: "Aos que virão depois de mim /caiba em sorte outra herança: /o
oiro depositado /nas margens da lembrança" (Elegia de Coimbra).
Mas
a dúvida sombria, quando às capacidades íntimas e ao nascer de um outro alvor,
não poderá eternizar-se. E, por vezes, surgem forças de lugares obscuros: "Há-de sentir o meu ódio /quem o meu ódio mereça" - eis a vil visão de quem
prova, diariamente, a vileza dos tempos em que subsiste (certas formas de viver
não poderão, de boamente, ser consideradas exemplos de vivência, só de mera
subsistência). É, assim, em “Cantiga do Ódio”, um poema de palavra vincada e
aguda, que o mote da insurreição renasce, triunfante: "que nos importa morrer /
se não morrermos de rastros?".
De
seguida, acrescentando uma necessária continuidade ao trabalho, apresenta-se a
“Xácara das bruxas dançando”, quarteto onde se regista o auge do assombro
reinante. No fundo, este poema acicata na lembrança os conjuntos de canções
tradicionais, isto é, de carácter vincadamente popular (não recorro ao termo
com intenções pejorativas, convém sublinhá-lo). Não obstante, é neste momento
que se descobre o maior veio intervencionista que a obra regista. Assim, desde
esse tempo em que "um conde" "fez um país", numa clara alusão à fundação de
Portugal, até à época presente (década de 40, recordo), onde "há bruxas que
dançam" e "estrelas mortas" (1), sobressaem retratos e lamentos que o poeta
pretende edificar como as bases de um tempo novo. No fundo, a ideia e a
intenção originais repetem-se: impõe-se o despertar ("Ó ama pátria dormindo /desde quando?" - 2), mas "há choros, ganidos" lá onde as "bruxas moram" e as
maiores virtudes de um povo desvanecem na vez de se altearem e firmarem como
candeias em noite escura ("caravelas, / mortas sob as estrelas" - 3). Qual a
derradeira solução? Eis o sacrifício do poeta: "Ama, tens frio; /cinge-te a
mim /e aquece-te ao lume /queimando os meus versos" (4).
Entre
crenças e desilusões, existe aqui, sem dúvidas, um apelo à mudança de regime e
da própria mentalidade, o que invariavelmente reclama o nascimento de um novo
Homem. Essa intenção de Oliveira acaba por aproximá-lo de Sophia de Mello
Breyner, por exemplo – mais um motivo que importa sublinhar para que tal
trabalho, valoroso, não permaneça nos álgidos corredores do olvido –, numa
redoma altruísta que ainda hoje deve subsistir como o mais alto valor de
inspiração. Ademais, não obstante todo o temor,
toda a densa neblina vigente, a evidência dos «homens dispersos" (a grande
falha da insurreição) e as "bruxas" que encarnam todos os males e vícios de um
país, é interessante constatar como sempre existe um lugar para a esperança e
para o maior de todos os triunfos: o amor ("Venço apenas a morte / quando te
amo" - “Choro”, 2).
O
carácter popular desses poemas volta a reafirmar-se no poema de encerramento da
obra, um quarteto que se epigrafa de “Assombração”. Logo no primeiro instante,
“Invocação” (e note-se como as partes adquirem agora um título), o poeta reúne
esforços e inspirações para a contenda que sabe ter pela frente, uma vez que a
acção impõe-se e a mudança só pela sensibilização, pela perseverança e pelo
proveitoso empreendimento se poderá manifestar: "Faz-me um bruxo dos versos /e
ao fluir do meu perro dizer /leva-me ao coração desta gente, /onde a sina lhe
doer". Reparemos como o poeta se auto-denigre e, humildemente, reconhece que o
seu canto é torpe; porém, pleno de intenção. Tal nuance apenas nos traz à
memória a ideia anteriormente exposta de uma mãe de parcos haveres lutando por
si e pelos seus com todas as frágeis armas que possui. Mas, em suma, é uma
parte da obra em que a vertente do “fantástico” ou “surreal” ressuscita, dado
que Oliveira instiga aqui o fértil universo das lendas e das superstições
populares. Exemplo disso é a parte que se lhe segue: “Memória de João
Santeiro”, em referência ao célebre líder de uma quadrilha de ladrões, "gandarês torvo", que no romance Alcateia, da autoria do próprio Carlos de
Oliveira, surge como um símbolo da resistência dos menos favorecidos em
oposição aos de “alta craveira”. O fim do poema, e da obra em si, é pungente e majestoso,
como um trovão seco que ribomba em estéril terra: "Ó porta do inferno, aqui nos
calas: /possa eu entre sonhos e cabalas /rasgar-te de poemas ou de morte".
Para encerrar o parágrafo, importa referir que, de modo algo curioso, embora
preservando a estilística habitual, este quarteto final desenha-se bem ao jeito
das famigeradas odes de Ricardo Reis.
Perante
todas estas premissas e todos estes apontamentos, conclui-se desde já que Mãe
Pobre é uma obra que prima por um ligeiro acréscimo de maturação em termos de
conteúdo e de forma, se a compararmos com Turismo, e pelo estridente grito de
revolta que encerra – por vezes distante, lamentoso e contido, mas
suficientemente vincado para que dele se ergam os braços, se fortifiquem os
espíritos e se moldem os carácteres.
Ainda que, recordo, todos estes trabalhos sejam apresentados de acordo
com a sua forma final, publicada na antologia Trabalho Poético, tal somente
poderá exponenciar o deleite do leitor ao saborear uma madura e depurada poesia
como esta o é. Embora, se evocarmos outros nomes e outros trabalhos, possamos
compreender que não se apresenta tão lustrosa como outras, mas perfeitamente
conseguida quanto à sua intenção e estilo. De certa forma, Carlos de Oliveira
não se assumiu assim tão diferente de outros poetas de proa que marcaram a sua
época. Também ele indagava por meios mais justo e suspirava por um tempo de
alvor. Apenas se serviu da sombra enquanto demandava pela luz mais pura:
Acusam-me de mágoa e desalento,
(…)
Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.
(Soneto).
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