Bom dia, camaradas, de Ondjaki
Até a publicação deste romance, Ondjaki só havia lidado com
a poesia e a prosa curta – havia publicado títulos como Há prendisajens com o xão (2002), Materiais para a confecção de um espanador de tristezas (2009),
poesia marcada pela leitura de nomes como Manoel de Barros, e Momentos de aqui (2001), E se amanhã o medo (2005), contos. Sua
vivência nesses outros gêneros certamente foi o que lhe deu suporte para o
romance. E isso está muito marcado neste Bom
dia, camaradas: é uma narrativa breve com certa incidência poética, embora não
esteja no poético a marca distintiva da literatura romanesca do escritor
angolano, assim como parece crer, ingenuamente, parte da crítica.
O lirismo,
especificamente no caso do texto que comentamos aqui, é decorrente do elemento
narrativo elegido pelo escritor para dar pulsão às ações. Bom dia, camaradas é narrado por um menino em fase de travessia da infância
para a adolescência – travessia que se confunde com o momento histórico que a
narrativa recobra, o de libertação de Angola e a chegada da democracia através das
eleições diretas para presidente. A infância da personagem logo se torna em
alegoria sobre outra infância, a do país africano, metonímia recorrente na literatura
angolana. Cito, para efeito, uma breve novela de outro escritor que se pauta
num exercício semelhante ao de Ondjaki, Quem
me dera ser onda, de Manuel Rui. Ao engendrar os problemas sociais de
Angola sob a metonímia de um prédio onde se fixam moradores vindos do interior
de Luanda com a ideia de criar um porco – o prédio como “cidade-cérebro”– o que
o narrador focaliza, na verdade, é a relação sujeito-espaço e logo este romance
figura como um retrato realista de um país caleidoscópico, uma espacialidade
eufórica, que reitera o frenesi da recente libertação conquistada com o fim do
colonialismo português.
A
matéria de que se compõe Bom dia,
camaradas é a memória, mesmo que não seja este um romance memorialista. O menino
deste texto, mesmo estando presente nas ações maiores do contexto onde está
imerso, a saída do presidente interino às ruas, os comícios com todo palavreado
de ordem, ele assume muitas vezes o tom evocador; personagem de seu tempo, mas,
de modo simultâneo, recurso narrativo que permite o escritor (e a posteriori o leitor) a se por em contato
com o tempo do narrado. Colocar isso na boca de um menino dá ao escritor toda
liberdade para a atuação para a imaginação, também o desobriga de uma reprodução
fiel da realidade ao mesmo tempo em que oficializa uma verdade entre esse real
e a ficção. Ainda, ao dizer que narrador desse romance é via para basta observar ainda outra situação: que o romance data do
início dos anos 2000 e a narrativa se dá há pelo menos vinte anos. Essas afirmações
são um tanto óbvias, mas adiantam para o esclarecimento do funcionamento da
narrativa.
Por
exemplo, aquilo que dá leveza e despojamento para a narrativa é em razão da
escolha do escritor por este narrador; um narrador que nos prende de elementos
sensoriais, imaginativos capazes de transformar o horror em humor, como é caso
da presença, no romance, da gangue do Caixão Preto, responsável por instaurar o
terror nas escolas com a matança indiscriminada de pessoas, as violações coletivas
de mulheres, o sequestro de crianças e outros horrores dado a conhecer apenas
aos que terão passado por algum estado de guerra como foi comum aos de Angola e
de África.
Bom dia, camaradas atesta não apenas
essa instabilidade na segurança pública, como também o processo de
disciplinarização dos corpos e o seu enquadramento numa organização social. Não
é à toa, portanto, a presença de espaços como o da família, o da escola –
predominantes na narrativa – e olhar panóptico dos FAPLAS. Sem contar na
constante preocupação com os banhos, o lavar das mãos, o pentear dos cabelos, não
correr para não suar, enfim, uma verdadeira repressão dos odores corporais em
detrimento do corpo limpo. Ou ainda as obrigações para com a cordialidade e o
tratamento de uns com os outros: “bua
taaardeeeee... camarádaaaaa...
diretoraaaaaa; atéééééééééé...
manhããããã camarádaaaaaaaa diretoraaaaaaaaa!” Toda a inocência e liberdade
da infância vão sendo dirigidas em nome de um projeto coletivo – como será
explicitado a certa altura – por um dos professores cubanos em missão de propor
a escolarização dos angolanos. Vem daí, da presença forte dos cubanos, o termo “camaradas”,
talvez o mais repetido ao longo do romance e sua impressão logo na abertura do
texto como testamento disso: Bom dia,
camaradas – como se denotasse já pelo título essa ordem, a construção de uma
cordialidade.
No
processo de construção identitária, Bom
dia, camaradas não se constrói pelo discurso de oposição ao colonizador, mesmo
que o narrador tenha certo embrião dos horrores do período de ocupação portuguesa
– mas esta é vista até como bons tempos pelo camarada António, um dos
interlocutores mais velhos do narrador. A diferença aqui é instituída pela relação
de distanciamento histórico, cultural e linguístico entre povos, situação visível
quando da chegada da tia Dada. Em certo momento do romance, por exemplo, espanta
ao narrador o desconhecimento da tia portuguesa sobre quem foi Ngangula. “Ó tia, não me digas que não sabes quem é o
Ngangula?! [...] Então, olha,
primeiro lê essa redação aí, que é sobre ele... Depois já vais perceber...”
Se já são fracas na memória a presença de seus heróis nacionais, na memória do
colonizador, os nomes dos heróis dos colonizados não existem.
Bom dia, camaradas é um romance total. Sente-se
com os olhos os cheiros e os odores da África, apalpa-se os desejos deste
menino narrador, vive-se seus medos, sua profunda relação com o espaço social e
a efervescência política de seu país. Quero com isso dizer, que mesmo o seu
autor não introduzindo quaisquer mudanças formais no plano do romance, Ondjaki
faz boa estreia no romance; não é apenas um texto muito bem escrito, é também uma
reintegração da força da narrativa ao seu lugar social. Não vejo ainda nenhum traço
de um texto utópico, como novamente e erroneamente, tem lido a crítica. Este
texto é, sim, um retrato de uma Angola profunda e deve ser lido como tal.
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