Bom dia, camaradas, de Ondjaki


Por Pedro Fernandes


Até a publicação deste romance, Ondjaki só havia lidado com a poesia e a prosa curta – havia publicado títulos como Há prendisajens com o xão (2002), Materiais para a confecção de um espanador de tristezas (2009), poesia marcada pela leitura de nomes como Manoel de Barros, e Momentos de aqui (2001), E se amanhã o medo (2005), contos. Sua vivência nesses outros gêneros certamente foi o que lhe deu suporte para o romance. E isso está muito marcado neste Bom dia, camaradas: é uma narrativa breve com certa incidência poética, embora não esteja no poético a marca distintiva da literatura romanesca do escritor angolano, assim como parece crer, ingenuamente, parte da crítica.

O lirismo, especificamente no caso do texto que comentamos aqui, é decorrente do elemento narrativo elegido pelo escritor para dar pulsão às ações. Bom dia, camaradas é narrado por um menino em fase de travessia da infância para a adolescência – travessia que se confunde com o momento histórico que a narrativa recobra, o de libertação de Angola e a chegada da democracia através das eleições diretas para presidente. A infância da personagem logo se torna em alegoria sobre outra infância, a do país africano, metonímia recorrente na literatura angolana. Cito, para efeito, uma breve novela de outro escritor que se pauta num exercício semelhante ao de Ondjaki, Quem me dera ser onda, de Manuel Rui. Ao engendrar os problemas sociais de Angola sob a metonímia de um prédio onde se fixam moradores vindos do interior de Luanda com a ideia de criar um porco – o prédio como “cidade-cérebro”– o que o narrador focaliza, na verdade, é a relação sujeito-espaço e logo este romance figura como um retrato realista de um país caleidoscópico, uma espacialidade eufórica, que reitera o frenesi da recente libertação conquistada com o fim do colonialismo português.

A matéria de que se compõe Bom dia, camaradas é a memória, mesmo que não seja este um romance memorialista. O menino deste texto, mesmo estando presente nas ações maiores do contexto onde está imerso, a saída do presidente interino às ruas, os comícios com todo palavreado de ordem, ele assume muitas vezes o tom evocador; personagem de seu tempo, mas, de modo simultâneo, recurso narrativo que permite o escritor (e a posteriori o leitor) a se por em contato com o tempo do narrado. Colocar isso na boca de um menino dá ao escritor toda liberdade para a atuação para a imaginação, também o desobriga de uma reprodução fiel da realidade ao mesmo tempo em que oficializa uma verdade entre esse real e a ficção. Ainda, ao dizer que narrador desse romance é via para basta observar ainda outra situação: que o romance data do início dos anos 2000 e a narrativa se dá há pelo menos vinte anos. Essas afirmações são um tanto óbvias, mas adiantam para o esclarecimento do funcionamento da narrativa.

Por exemplo, aquilo que dá leveza e despojamento para a narrativa é em razão da escolha do escritor por este narrador; um narrador que nos prende de elementos sensoriais, imaginativos capazes de transformar o horror em humor, como é caso da presença, no romance, da gangue do Caixão Preto, responsável por instaurar o terror nas escolas com a matança indiscriminada de pessoas, as violações coletivas de mulheres, o sequestro de crianças e outros horrores dado a conhecer apenas aos que terão passado por algum estado de guerra como foi comum aos de Angola e de África.

Bom dia, camaradas atesta não apenas essa instabilidade na segurança pública, como também o processo de disciplinarização dos corpos e o seu enquadramento numa organização social. Não é à toa, portanto, a presença de espaços como o da família, o da escola – predominantes na narrativa – e olhar panóptico dos FAPLAS. Sem contar na constante preocupação com os banhos, o lavar das mãos, o pentear dos cabelos, não correr para não suar, enfim, uma verdadeira repressão dos odores corporais em detrimento do corpo limpo. Ou ainda as obrigações para com a cordialidade e o tratamento de uns com os outros: “bua taaardeeeee... camarádaaaaa... diretoraaaaaa; atéééééééééé... manhããããã camarádaaaaaaaa diretoraaaaaaaaa!” Toda a inocência e liberdade da infância vão sendo dirigidas em nome de um projeto coletivo – como será explicitado a certa altura – por um dos professores cubanos em missão de propor a escolarização dos angolanos. Vem daí, da presença forte dos cubanos, o termo “camaradas”, talvez o mais repetido ao longo do romance e sua impressão logo na abertura do texto como testamento disso: Bom dia, camaradas – como se denotasse já pelo título essa ordem, a construção de uma cordialidade.  

No processo de construção identitária, Bom dia, camaradas não se constrói pelo discurso de oposição ao colonizador, mesmo que o narrador tenha certo embrião dos horrores do período de ocupação portuguesa – mas esta é vista até como bons tempos pelo camarada António, um dos interlocutores mais velhos do narrador. A diferença aqui é instituída pela relação de distanciamento histórico, cultural e linguístico entre povos, situação visível quando da chegada da tia Dada. Em certo momento do romance, por exemplo, espanta ao narrador o desconhecimento da tia portuguesa sobre quem foi Ngangula. “Ó tia, não me digas que não sabes quem é o Ngangula?! [...] Então, olha, primeiro lê essa redação aí, que é sobre ele... Depois já vais perceber...” Se já são fracas na memória a presença de seus heróis nacionais, na memória do colonizador, os nomes dos heróis dos colonizados não existem.

Bom dia, camaradas é um romance total. Sente-se com os olhos os cheiros e os odores da África, apalpa-se os desejos deste menino narrador, vive-se seus medos, sua profunda relação com o espaço social e a efervescência política de seu país. Quero com isso dizer, que mesmo o seu autor não introduzindo quaisquer mudanças formais no plano do romance, Ondjaki faz boa estreia no romance; não é apenas um texto muito bem escrito, é também uma reintegração da força da narrativa ao seu lugar social. Não vejo ainda nenhum traço de um texto utópico, como novamente e erroneamente, tem lido a crítica. Este texto é, sim, um retrato de uma Angola profunda e deve ser lido como tal.


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