Autorretrato inédito de Ticiano
Barbudo e de perfil, com aproximadamente 85 anos, com o
rosto marcado pelas rugas nas bochechas, na frente e ao redor da boca. Este é
um autorretrato com o qual o grande pintor Ticiano Vecellio (Pieve di Cadore, 1477?1482
– Veneza, 1576) quis ser lembrado. Fez o desenho ao entardecer de sua
existência e já muito enfermo, mas ainda capaz de colocar no papel sua
extraordinária força expressiva. A humanidade herdou assim um pequeno esboço de
apenas 12x10cm, só atribuído ao grande mestre há alguns anos. O trabalho foi
colocado em exposição de uma única obra pela primeira vez no Museu Correr – Ticiano, um autorretrato. Problemas de
autobiografia no arte ticianesca.
Aprendiz de Giovanni Bellini, pintor oficial da República
Serena de Veneza, pintor preferido de Carlos V, retratista oficial de Felipe
II, rei da Espanha, entre outras personagens. Ticiano era um grande pintor, mas
também um hábil desenhista. Ou era melhor desenhista Michelangelo? É provável que
Ticiano tenha vivido toda sua existência com essa pequena pedra no sapato.
O autorretrato acima exposto é a maior evidência de que o
pequeno desenho é uma verdadeira obra de arte. E, além disso, fornece novas
luzes para compreender melhor a trajetória artística de Ticiano, segundo a
pesquisadora Luba Freedman, professora de arquitetura e belas artes na
Universidade Hebraica de Jerusalém e autora de dois livros sobre o pintor. “Cheguei
à conclusão de que este desenho é uma clara prova não apenas do aspecto físico
do artista na velhice, mas também da reconhecível qualidade de sua arte. Sinto
que envolve diversas mensagens enviadas pelo artista ancião a quem o observa”,
escreve Freedman.
Além de Freedman, Jodi Cranston, professora de história da
arte e arquitetura da Universidade de Boston, e Joanna Woods-Marsden, profesora
de história da arte do Renascimento na Universidade da Califórnia, todas
estudiosas que têm contribuído com leituras que apontam novas luzes no debate
sobre a produção gráfica de Ticiano, o desenho é suficiente para justificar a presença
do pintor entre os maiores expoentes da escola veneziana. E não é exagero:
vendo o último ato do retratista e paisagista do Renascimento, o expectador
curioso pode chegar a compreender que a verdadeira intenção de Ticiano,
seguramente não era a de se autorretratar com os signos da velhice, buscava sim
deixar uma imagem realista e ao mesmo tempo vibrante de um homem octogenário.
“Embora não gozasse de boa saúde, retrata com maestria sua
própria imagem idealizada na pureza do contorno e realista na pureza dos
detalhes desenhados no rosto ancião. O autorretrato contrapõe o espírito do
gênio que nunca se dobrou ao envelhecimento. Sendo ancião segue sendo belo
porque destaca a alma de mestre”, escreve Freedman.
O autorretrato foi descoberto ao acaso nos Estados Unidos em
2003, quando apareceu na capa da revista Estudios
tizianescos e por muito tempo esteve atribuído a Giuseppe Porta Salviati.
Em 2007, o pesquisador David Rosand outorgou a paternidade do desenho a
Ticiano, hoje propriedade de uma coleção privada.
A técnica empregada por Ticiano em seu autorretrato póstumo reúne
todo seu talento pictórico e gráfico. O busto toma por completo o papel, a cabeça
ocupa um plano muito bem definido com linhas nítidas, entre as que destacam um
pequeno gorro e nariz columbino. Por sua vez, a barba e o bigode ondulados dão movimento.
Em segundo plano aparecem as pregas suaves de sua roupa. Utilizou fiz grosso e
negro nos traços mais decididos e carbono nas linhas mais finas. Cabe
perguntar-se por que Ticiano optou por um tamanho tão pequeno. Há quem sustém
que era um presente enviado num sobre a Felipe II. Mas a verdadeira impulsão que
moveu Ticiano foi silenciar as vozes errôneas que corriam na corte espanhola
segundo as quais “era só capaz de pintar borrões”. Foi realizado em 1575, um
ano antes de morrer em plena peste veneziana.
O velho mestre pressentia a morte, mas não a imortalidade.
* Texto escrito a partir de "Un autorretrato de secreto de Tiziano ve la luz en Venecia, de Milena Fernández, publicado no jornal El País.
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