As inspirações do teatro de Shakespeare
Por Carolina Cunha
William Shakespeare por Lous Coblitz. |
No século 16, na Inglaterra, no período da rainha Elizabeth,
um grupo de jovens escritores começou a escrever peças e deu início ao chamado
teatro elizabetano, que se tornou muito popular. Em 1591, o jovem William
Shakespeare decidiu sair da cidadezinha de Stratford-upon-Avon e se mudou para Londres,
onde assimilou o que já havia sido feito no teatro e potencializou sua criação.
Tornou-se ator, escreveu peças e virou diretor do Teatro Globe, o mais
prestigiado da capital. Sua trupe era considerada a número I da cidade e se
apresentava para todo tipo de plateia, conseguindo entreter ao mesmo tempo os
nobres e o povo.
Filho de um comerciante, Shakespeare nasceu em abril de 1564
e morreu aos 52 anos de idade. Foi autor de 38 peças (entre históricas,
comédias e tragédias), como Hamlet, Romeu e Julieta, Otelo, Macbeth, Sonho de uma noite de verão, Ricardo III, Rei Lear, A megera domada e
A tempestade, entre outras. Shakespeare
se tornou o dramaturgo mais conhecido de todos os tempos, tendo influenciado
toda a produção teatral que viria depois dele. Fora dos palcos, escreveu 154
sonetos e uma variedade de outros poemas.
Ruptura da tragédia
clássica
Considerada o berço do teatro ocidental, a antiga Grécia
produziu o drama trágico. Estabelecida a partir de Aristóteles, a lei das três unidades
– ação, espaço, tempo – é considerada regra obrigatória para a encenação da tragédia
clássica. Mas Shakespeare rompeu essa lei em peças dramáticas como Hamlet (escrita entre 1599 e 1601) e foi
criador do conceito de cena moderna.
“A unidade do lugar é a que se rompe com mais evidência. Enquanto
as peças gregas e latinas, até então, desenvolviam-se em um único espaço,
normalmente em frente a um palácio, em Shakespeare os cenários são múltiplos. Com
a unidade de ação, a ruptura também é clara: enquanto no drama grego a ação deve
ser centrada no personagem principal – rei, rainha ou outra figura nobre –, na
dramaturgia de Shakespeare personagens secundários têm autonomia de confabular
e determinar novos rumos. Cai por terra também a unidade de tempo. Na tragédia
grega desenvolve-se a trama no período de um dia, porque está centrada na solução
do conflito”, observa Paula Mathenhauer Guerreiro, pesquisadora em Ares da Cena
na Unicamp.
Mestre das comédias e
do amor
No teatro elizabetano, os autores também começaram a
explorar novos gêneros como as comédias românticas e as tragicomédias. Um dos
maiores talentos de Shakespeare era escrever cenas cômicas. Ele era dono de um
humor sagaz e irônico, com diálogos engraçados que surgem muitas vezes em meio
à desgraça alheia.
“Antes de Shakespeare, principalmente no teatro grego, você
tem a tragédia e a comédia sendo tratadas de formas separadas. O que
Shakespeare faz é observar que na vida a comédia e a tragédia não andam
separadamente, mas são simultâneas. Por exemplo, em velório enquanto uns choram
sobre o caixão, outros podem estar na sala ao lado contando anedotas – essa é a
realidade da vida. Shakespeare coloca essa realidade lado a lado no palco”, diz
Ronaldo Marin, professor do Instituto de Artes e Multimeios da Unicamp e
diretor do instituto Shakespeare Brasil.
As idas e vindas das paixões também interessavam o bardo. Shakespeare
gostava de fazer piadas com temas como o amor e o casamento. As peças A mega domada, Sonho de uma noite de verão e Muito
barulho por nada, escritas no final dos anos 1590, trazem casais que se
desencontram e sonham em viver felizes para sempre. São as ancestrais das
atuais comédias românticas do cinema.
Um inventor de novas
palavras
“Em se tratando de invenção, o que Shakespeare foi mesmo,
foi um grande construtor de neologismos. Quando ele precisava de uma palavra e
ela não existia, ele simplesmente inventava”, comenta Martin.
Shakespeare usava um vocabulário muito vasto. Naquele tempo,
a língua inglesa ainda estava em formação e contava com cerca de 150 mil
palavras. O dramaturgo usou em seus textos quase 20 mil palavras e cunhou mais
de 3 mil novos termos.
Até Machado de Assis reconheceu os méritos do vocabulário shakespeariano,
não só na criação de palavras, mas na forma de falar de seus personagens. “O
Império Britânico passará, a república Norte-Americana passará, mas Shakespeare
permanecerá. Quando não se falar mais inglês, falaremos Shakespeare”, comentou
certa vez o escritor brasileiro.
“A grande variedade de estilos marca Shakespeare. Ele provocou
muitas inovações na linguagem. Introduziu palavras novas na língua inglesa,
adaptou palavras dos dialetos populares e usou várias formas da linguagem do
povo. Em muitas peças ele usa palavras bastante chulas, com muitas referências
sexuais e insultos. Mas também produziu uma linguagem pomposa e diálogos com poesia
de altíssima qualidade”, diz John Milton, professor de Literatura Inglesa da
USP.
Para o professor, o inglês daquela época hoje pode soar
rebuscado. “As peças são difíceis com a linguagem arcaica. Muita gente abre
Shakespeare e não consegue entender nada. Por isso as adaptações podem ser uma
boa porta de entrada para seu universo. Mas ele ainda continua atual. Apesar das
peças terem sido escritas há séculos, ainda são muito pertinentes e trazem
temas que nos preocupam até hoje”.
Personagens
humanizados
A dramaturgia shakespeariana é conhecida por sua extensa
galeria de personagens emblemáticos como Hamlet, Ofélia, Otelo, Iago,
Cleópatra, Rei Lear, Macbeth, Desdêmona, Rosalinda, entre outros.
Shakespeare criou mais de mil personagens, muitos são dotados
de uma dimensão interior nunca vista antes nas histórias. Da pena do autor saíram
diálogos que discutem temas da filosofia, da teologia, da metafísica.
Seus personagens vão do desespero à felicidade, em tramas
que falam de amor, loucura, guerra, disputa pelo poder, política e liberdade. Shakespeare
criou alguns dos primeiros anti-heróis da literatura, protagonistas que não possuem
vocação heroica, têm um quê de malvados, podendo realizar a justiça por motivações
egoístas.
“Todos os grandes heróis trágicos dele têm falhas com as
quais podemos nos associar, como o ciúme de Otelo, a ambição de Macbeth, a atração
pelo poder de Ricardo III, a procrastinação de Hamlet, e na tragédia de
Cleópatra, Marco Antônio é um homem poderoso que larga tudo por amor. Todos os
personagens têm essas características muito humanas, diz Milton.
Um marco da
modernidade
O mundo de Shakespeare estava em transição, transformado
pelo Renascimento, as Grandes Navegações, a filosofia de Maquiavel e o
heliocentrismo de Copérnico. Segundo o crítico norte-americano Harald Bloom, as
criações do dramaturgo expressaram o conhecimento e o espírito da época
moderna, que definiu a condição humana como a entendemos hoje.
Para Marin, os personagens deixam de ser guiados pelo
sobrenatural e assumem uma atitude crítica diante de suas vidas. “Shakespeare
foi pioneiro neste profundo mergulho no abismo dos mistérios da alma humana. Nem
mesmo o teatro grego atingiu tamanha profundidade, pois nele, os seres humanos são
comandados pela vontade dos deuses e do destino. Em Shakespeare, não. O homem é
o responsável pela construção do próprio destino. Nada mais moderno. Essencialmente,
o ser humano permanece o mesmo; por isso Shakespeare permanece tão atual”.
Ligações a este post:
No Tumblr do Letras separamos alguns títulos essenciais para uma introdução à leitura de William Shakespeare.
* texto copiado de Almanaque Saraiva, ed.95, abril de 2014, p.16-18.
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