Angústia
Por Rafael Kafka
Old man in sorrow. Vincent Van Gogh (detalhe). |
Semana
passada, passeei com uma amiga pelo campus da Universidade Federal do Pará.
Acabáramos de ter uma reunião com mais dois colegas da área de Letras com o
intuito de criarmos uma revista literária ou algo do tipo. Após a produtiva
conversa, almoçamos no restaurante universitário e perambulamos pelo campus.
Minha amiga faz mestrado em Antropologia na referida instituição de ensino,
enquanto eu faço uma segunda habilitação em Letras (sou formado em Português e
agora estudo Inglês).
Vejo em seu
rosto marcas de um profundo cansaço motivado por uma grande quantidade de
leituras e pelas incertezas e cobranças que um curso de pós graduação traz
consigo. Na conversa tida, minha amiga falou-me de suas dificuldades e eu
comecei a pensar nas minhas. Basicamente, comecei a entender de um modo mais
concreto que cada ser humano tem seu caminho e todos nós lidamos com essa coisa
malvada a qual os filósofos da existência chamaram de angústia.
Ouvi o que
minha amiga dizia e pensava no que chegava a mim de pensamentos turvos quando
sozinho começava a me questionar do porquê estar em uma nova graduação quando
poderia/deveria estar em um curso de mestrado. Pensei em toda a minha história
pessoal cheia de problemas familiares e como ela influenciou a minha concentração
em um foco acadêmico e como ela me levou a deixar de lado momentos importantes
de aprendizado.
Ouvindo
minha amiga futura mestra em Antropologia, comecei a perceber o quão é tolo o
meu pensamento em certos momentos nos quais eu me considero inferior a colegas
que já estão em níveis de formação maiores do que o meu. Isso porque assim como
nós, seres de carne e osso da graduação, os seres que fazem pós graduação
sentem medo e angústia. Talvez até mais intensas do que nós em um mundo tão
cruel e tão exigente.
Olhei para
o meu passado e parei de me julgar. Olhei para meu futuro e vi que poderia
construir algo novo dele. Talvez a segunda graduação tenha sido uma segunda
chance que me dei para aprender coisas mais básicas antes de ir para graus mais
elevados de estudos acadêmicos. Talvez. Mas o que é certo é que eu devo
simplesmente me focar no caminho que escolhi e ignorar quaisquer outras coisas
que me soem como uma medida de mim com outros seres. É tolo fazer isso,
justamente porque estamos no mesmo mar sem sentido rumo ao fim de nossas vidas.
O sentido somos nós quem damos a nosso projeto de vida e muitas vezes olhamos
para o gramado do vizinho que aparenta estar mais bem cuidado sem pensar em
todas as dificuldades que temos para manter o nosso do jeito que está.
Minha amiga
sem querer me ajudou a entender melhor a vida com a sua singela fala sobre as
dificuldades de sua vida.
Atualmente
estou lendo Ser e Tempo de Martin Heidegger e terminei por esses dias Big Sur de
Jack Kerouac. Impossível não relacionar os dois textos pelo fato de em ambos
ser abordado um tema muito interessante e presente na vida humana: a angústia.
Sim, aquela coisinha que citei acima e que toma conta de mim quando estou
sozinho e me sentindo um nada por estar fazendo uma graduação nova quando
deveria estar fazendo mestrado.
Heidegger
diz que a existência humana é afundada no senso comum, repetindo verdades
prontas e tacitamente aceitas de modo inquestionável por todas as pessoas.
Porém, em qualquer momento da vida, podemos ser vítimas de um apelo da
consciência humana que pode vir na forma de angústia mostrando o fato inegável
de que somos únicos em nossos caminhos existenciais. Quando a angústia vem,
sentimo-nos estranhos em relação ao mundo, sentimo-nos estrangeiros em nossa própria
terra.
Jack
Kerouac em Big Sur fala justamente da angústia que o acometeu após o boom da
literatura Beat ocorrer. Se em On The Road e em Vagabundos Iluminados vemos um
autor cheio de vida, inquietude, pensamentos elétricos e felizes no tocante à vida,
agora deparamo-nos com um autor arruinado, destruído por seus excessos e com
constantes crises de loucura. Vemos Kerouac rir de seus próprios ideais de vida
simples Beat, de questionar o mito criado sobre ele, de ver os seus amigos como
potenciais inimigos em crises de paranoia e de pensamentos psicóticos.
Observamos as idas e vindas até uma cabana pertencente ao amigo Lawrence
Ferlinghetti com o intuito de apagar os pensamentos conflituosos em sua mente,
mas com os mesmos voltando maiores e mais intensos. Vemos, enfim, Kerouac
sozinho consigo mesmo tentando não sucumbir ainda mais à loucura que em sua
mente começa a brotar.
O que o
texto sóbrio, apesar de difícil, de Heidegger, o texto cheio de frases soltas e
sintaxe desconstruída de Kerouac e a conversa com minha amiga têm em comum é
isso: a angústia. Tal sentimento é o que mostra ao ser humano que ele é livre
para escolher a si mesmo para criar suas respostas e ditar seu ritmo de vida. A
angústia é aquela sensação que vem de algum lugar desconhecido por nós e
depois se evapora no ar, dando a entender que voltará a qualquer momento. A
angústia somos nós, a náusea somos nós, como diria o personagem sartreano
Antoine Roquentin em um uso generoso da primeira pessoa do plural.
Sem
angústia nada somos. Sem angústia não somos. Sentir angústia é o maior
indicador de que a vida está correndo de modo autêntico e humano. Todavia, não
basta sentir angústia. Tem que se saber que se sente angústia para por meio do
apelo de nossa consciência acordarmos e nos mantermos livres conosco mesmos.
Saber que se sente angústia creio ser sincero consigo mesmo e não ter medo de
se sentir sozinho de vez em quando.
É aí que
entra a linguagem, em especial a artística e mais especificamente a literária.
A linguagem não consegue mostrar de modo direto o que é o sentir angústia, mas
por meio dos diferentes contatos com as pessoas percebemos em seus “sulcos”
comunicativos como a angústia se manifesta. Um exemplo é o livro de Kerouac que
aqui cito: em nenhum ponto ele fala a palavra angústia, pelo menos que eu
lembre. Porém, os recursos sintáticos, estilísticos e lexicais utilizados por
Duluoz em sua narrativa fazem-nos sentir o peso de sua angústia, de sua loucura
quase que palpável em seu texto. E é isso que torna sua leitura bela e
assustadora.
A angústia
não é ouvida, digamos assim. Ela é sentida. E quando sentimos por meio de uma
conversa de bar ou de uma boa obra literária que o outro também sente angústia,
começamos a entender melhor sobre nós mesmos.
Essa
crônica nasceu de um momento sem inspiração e por isso angustiante demais para
mim. Um momento em que resolvi parar para descansar e percebi que a precisava
terminar. Por isso alguns detalhes de sua construção podem sair bem desconexos
e toscos, mas é um risco que devo correr por contas das exigências do ofício.
Acho que como todo cronista que se preze, digo que escreverei com um tempo bem
razoável antes da deadline, porém deixo para fazer o texto de modo a entregá-lo
com apenas uns poucos minutos de tempo ainda sobrando. Péssima mania.
Se me fosse
permitido agora tecer alguma das teorias mirabolantes que permeiam nossas
crônicas como uma brincadeira com o fato de seres humanos adorarem amar teorias
que deem lógica a esse universo, eu diria que deixamos para escrever em cima da
hora pois é o momento em que a angústia mais toma conta de nós e nessas horas
ela se torna nosso combustível. Um combustível que deveria queimar em outros
momentos sérios, como a prova de um mestrado, por exemplo. Queimando a
angústia, produzimos nossos melhores textos quando estamos prestes a perder o
prazo e, sem querer ,fazemos aquilo que queremos fazer quando com tempo e
sobriedade: um tecido verbal decente.
Mas como
disse, são só teorias. Ou melhor: uma teoria. Bem tola, por sinal.
O certo,
contudo, é que somos angústia. E não devemos nos angustiar por isso. A qualquer
momento de nossas vidas, poderemos ter uma sensação caracterizada, ao menos em
mim, como uma certeza de que nossa vida não tem sentido algum, de que os rumos
tomados não são os nossos e sim de uma força maior que nos empurra para uma
direção não muito aprazível; de que somos demais na ordem astral do espaço e de
que nossa morte em si nada mudaria na realidade; de que estamos perdidos e de
que nossas verdades de nada servem; de que estamos conscientes demais e devemos
dormir; etc.
Nesses
momentos, é bom simplesmente conversar com qualquer pessoa sensata para
entendermos que somos angústia e que por isso mesmo somos pessoa como outra
qualquer. Digo isso, pois muitas vezes em minhas crises pego-me vendo outras
pessoas como superiores a mim por serem controladas, donas de si etc. Hoje sei
que, por mais controlada que seja uma pessoa, ela sente angústia. Ela se sente
insegura às vezes, um nada. Perdida demais. Ela talvez tenha o talento para
disfarçar bem, o que eu sei ser algo não existente em mim. Todavia, como ser
humano de carne e osso, ela sente angústia e como eu, mesmo estando no pós-doutorado de entendimento da vida, ela se sentirá em algum momento com uma peça
faltando, em dívida consigo mesmo no rumo da plenitude.
Isso me
tranquiliza por ora. Pois é o preço de ser um ser humano.
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