A lamentável leveza da morte
Por Rafael Kafka
Gabriel García Márquez, aplicado às letras desde quando jornalista. Dessa dedicação brotou obras clássicas como Cem anos de solidão. |
Lembro-me de um professor meu, em meus tempos de cursinho,
no Centro Federal de Educação e Tecnologia do Pará (CEFET/PA) em 2007, apresentando
para mim um livro de título bem singelo: Memórias de minhas putas tristes. Lembro igualmente de outro professor, no mesmo
recinto, dizendo que não entendia como aquele autor conseguira ganhar o Prêmio
Nobel de literatura. Eu levaria sete anos para comprar o livro e deixá-lo me
esperando na prateleira improvisada de meus livros. Levaria um pouco menos,
seis anos, para comprar o maior clássico de Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, que seria dele a
primeira leitura feita por mim.
No excelente prefácio de Eric Nepomuceno, uma cena a qual eu
adoraria ter vivido: a do jovem tradutor encontrando o seu mestre e criando uma
rara e profunda relação de amizade com o mítico escritor. Há também uma breve
introdução mostrando como Gabo passou por maus bocados para conseguir produzir
sua obra prima e viver todos os dias restantes de sua vida sem passar nenhum
tipo de necessidade.
Como disse meu camarada Pedro Fernandes numa postagem que me
levou a descobrir, em meio a uma internet ruim, a morte de Gabito, se ele
tivesse escrito apenas Cem anos... em
sua longa vida, já teria lugar no rol das grandes figuras da literatura
mundial. Mas ele não se limitou a isso. A saga da família Buendía merece por si
todos os tipos de análise que se puderem fazer sobre ela: o seu discurso denso,
as suas figuras de medo que mais parecem tiradas de típicas histórias
amazônicas, as alegorias ao clima turbulento da América Latina, a imensa
quantidade de personagens com particularidades próprias, sem recair, contudo,
em uma fauna de seres planos, a oralidade ao mesmo tempo explícita e
subentendia de seu texto, enfim: uma obra perfeita.
Gabito poderia parar por aí. Poderia mas não parou. E foi
bem mais adiante. De sua imensa bibliografia, até o presente momento li quatro
livros. Depois de Cem anos, li Crônica de uma morte anunciada. Vemos
aqui mais uma vez o escritor utilizar-se de uma desconstrução do tempo que nos
anuncia fatos vindouros e definitivos da história, mas ainda assim, mesmo com
um spoiler imenso, seguimos presos
para ler como aquele fato se passou e foi sentido por todos. A morte do
protagonista não é em si o fato mais importante dessa novela, e sim o modo como
ela foi sentida por todos e como a realidade se mistura ao absurdo ampliando o
terror existente no ato de viver.
Após essa, li os contos peregrinos e foi impossível para mim
não me apaixonar por figuras como o presidente deposto e que parecia sempre
estar pronto para a morte sem que esta estivesse pronta para ele; pelo rapaz
que se empolga tanto com a velocidade do carro ao ponto de ignorar a amada no
banco do lado esvaindo-se em sangue, pelos irmãos que desejam a morte da
governanta para serem livres e se chocam quando a descobre morta de forma
brutal; e pela bela adormecida que tantas vezes me perturbou em bancos de
ônibus com sua beleza intocável.
Em todos os seus livros, Gabito me tocou profundamente por
falar de situações que de certo modo eu já vivenciara. O seu realismo mágico
para mim, como o de Cortázar, o de Kafka e o de Saramago, me tocou por ser a
vida como ela é, para desespero de Nelson Rodrigues e outros reacionários de
linguagem linear. Mas houve um livro dele em especial que muito me tocou. E
esse não é um romance e sim algo muito mais interessante: a sua vida
metamorfoseada em livro.
Viver para Contar foi
lido por mim em uma fase da vida na qual o interesse por autobiografias estava
bem intenso. Eu acabara de ler As palavras,
de Jean-Paul Sartre e mesmo com aquela construção bem surreal de um universo
infantil extremamente consciente de tudo, eu gostei demais da obra achando o
texto feito por alguém sobre sua própria vida o mais bem escrito que já tive
oportunidade de ler. Contudo, ao ler Viver
para contar, logo descobri que nem mesmo Simone de Beuavoir e Jack Kerouac
com o seu amor pela vida seriam capazes de escrever textos tão belos quanto
esse.
Aqui vi Gabo no esplendor de sua vida. Um garoto desde novo
apaixonado por poesia e descuidado com os estudos, que seria lembrado demais
por mim na imagem de Santiago Zavala de Vargas Llosa em Conversa na catedral. Um rapaz membro de uma numerosa família
pobre, cujo pai tinha a ambição de que ele tivesse o diploma universitário de
advogado. Ao invés disso, Gabito virou jornalista, preocupou-se em difundir a
literatura como todo grande escritor engajado com seu ofício faz e com uma
série de dificuldades só dividiu com suas duas maiores paixões, a literatura e
o jornalismo, espaço com a vida boemia e as mulheres.
Vi ali de forma quase que palpável a vida do escritor e
leitor sedento, que começou com os quadrinhos para chegar a grandes clássicos
como James Joyce. Vi ali um modelo do que quero ser. Um modelo do que devo ser.
Uma criatura afundada na literatura e no prazer de se viver em uma dimensão
diferenciada, por ter a leitura e a imaginação como complementos da vida em
carne e osso.
Gabito me trouxe uma crise imensa com essa autobiografia,
pois a lendo eu percebi como estava longe da vida feliz de um leitor que se
diverte apenas com papel e caneta. Gabito, sem querer, me ensinou a viver e até
hoje luto para me tornar um leitor mais e mais sedento, ao mesmo tempo em que
sinto ao meu redor o mundo existindo com toda a sua concretude e beleza.
No extenso rol de amigos de Gabriel García Márquez, um, em especial, José Saramago. |
Há quatro anos, José Saramago morria. No dia dezoito de
julho, aquele que então era o escritor vivo mais relevante para mim despedia-se
deste mundo para a eternidade. Foi uma tristeza bem atroz, pois creio ter sido
José o primeiro ídolo vivo meu que eu vi morrer. Naquele momento, senti uma
tristeza atroz comparável à perda de um ente querido. Para não dizer que cometo
exageros, naquele momento falecia também minha avó materna e até hoje, mesmo
soando demais insensível, digo que senti mais a dor por esse homem que me
mostrou o absurdo da condição humana do que por minha avó. São as coisas da
vida.
Hoje, foi Gabito quem morreu e a tristeza que sinto é um
pouco mais calma, porém também intensa. Na verdade, é a tristeza de saber que a
morte é algo um tanto quanto justo. Uma hora aqui estamos e de repente não mais
estamos. Para uns tudo acabou, para outros tudo recomeça em um novo plano. Não
sei ao certo no que acredito, mas mesmo distante de todo o contexto no qual
García Márquez viveu, sinto que perdi alguém importante.
Vem-me à mente a imagem de Clarice sofrendo as crueldades da
amiga gordinha e no final conseguindo As
reinações de Narizinho. Penso então em Clarice, que em uma crônica do livro
A descoberta do mundo assumiu ser a
garota que atravessava a cidade por conta de um livro e sofria crueldades para
ter o livro, abraçada ao livro e dizendo que ele é seu amante. Clarice, genial
como sempre (e de um modo ignorado por todos os que a citam no Facebook)
refletiu bem como é a relação de um leitor com o que lê e com que produz o que
ele lê. Eu queria demais apertar a mão de Gabito e tomar uma cerveja com ele.
Pode parecer coisa de fã empolgado, mas eu realmente subia nos ônibus e
contemplava pessoas em bares pensando em como seria se eu e mais alguns amigos
estivéssemos ali sentados conversando com escritores que nos disseram algo. Uma
sensação que desde muito tempo tenho quando penso em outros nomes que
infelizmente não pude conhecer e nem poderei jamais, como Cortázar (meu amigo
de coração) e Simone (minha eterna musa postumamente amada por mim).
A morte é injusta porque acaba com tudo. Uma frase célebre
do humorista Chico Anysio diz muito sobre a vida e sempre é citada por mim. Ele
dizia que não tinha medo de morrer e sim pena de ter de morrer um dia. Penso
que é isso que diferencia grandes seres humanos de pequenos seres humanos: os
pequenos têm medo, como animais irracionais, têm instinto de sobrevivência. Os
grandes têm pena, como aqueles seres que sentem ainda não terem explorado todas
as possibilidades dessa imensa vida que nos rodeia. Por isso, olham para frente
torcendo para que a morte não venha ainda, pois muito querem viver. Não à toa,
Benedito Nunes até poucos meses antes de sua morte ainda palestrava sobre os
mais variados gênios da literatura e da filosofia. Não à toa, seres como esses
preferem a morte quando o seu corpo não mais lhes obedece. A velhice só é
temida pelos seres que têm pena, pois ela impede a liberdade de movimentos. A
morte só é algo lamentado, pois a aventura vai acabar... Gabito é do tipo que
sente pena de morrer. Sinto isso como leitor que aprendeu a viver de forma
diferenciada por causa dele.
Mais uma vez repito: Gabriel me ensinou a viver.
Gabriel García Márquez para mim é uma desmistificação.
Apesar de ter lido antes dele outros autores muito importantes que não seguiram
o mito do escritor louco e miserável tão caro aos imitadores de amantes da
literatura e da crítica literária, ele foi a imagem mais perfeita, ao lado de
Simone de Beauvoir, do escritor tenaz e feliz com a vida levada. Viveu 87 anos
e conseguiu fazer sucesso ainda vivo, sendo uma pessoa de hábitos simples e
desejo de vida imenso. Um exemplo para mim.
Fecho esse texto, pois realmente está sendo muito difícil
procurar palavras para falar de tamanha existência que é a de Gabito. Mas, como
leitor sedento, digo que com Gabito aprendi que a vida deve ser algo
“espalhado”, viva, cheia de possibilidades. Não adianta afundarmo-nos nos
livros se não queremos falar do que lemos; se não queremos o que lemos nos
invadindo e se não queremos nos aventurar pelo mundo. Um escritor ou leitor
cheio de pose logo identificamos e pelo menos eu adoro manter distância desse
tipo de gente.
Tudo culpa de Gabito que, mais uma vez eu digo, ensinou-me a
viver e a ler a vida com os olhos sedentos da garotinha lispectoriana que
abraça com força o seu amante de capa dura.
Vá em paz, Gabriel. Uma pena que não pude apertar sua mão.
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