A desumanização, de Valter Hugo Mãe
Pode-se dizer que A
desumanização é um romance de retornos. Embora, uma das obsessões de Valter
Hugo Mãe, segundo o autor tem confessado, seja a de não buscar se repetir e
fazer de cada romance um começo de tudo porque lhe frustra a ideia de viver
toda uma vida para ser autor de um só texto; embora não alcancemos certa limitação
criativa, fato que se verifica em alguns nomes já conceituados como Mia Couto
(julgamento que é uma birra particular com seu último romance, A confissão da leoa); A desumanização é um corolário de obsessões
muito particulares da obra de Valter Hugo Mãe. E isso não o limita. No seu caso
específico, é o contrário: inaugura uma feição literária até certo ponto
inovadora na literatura de língua portuguesa – consideração que vai de encontro
ao que o próprio escritor tem dito buscar, fazer do seu texto um texto
universal.
Um desses retornos notados está um novo ângulo para o tema
da morte tomando por base a ótica de uma criança. Isso fora já experimentado,
por exemplo, em o nosso reino e o
tema isolado – a morte – está presente em todos os demais romances. No caso de A desumanização, essa temática é notada a
partir da perda do parente muito próximo: já na abertura da narrativa, o leitor
encontra com Halla, a narradora infantil, enlutada pela perda repentina da irmã
gêmea Sigridur. É preciso dizer, ao notar a partir dos nomes das personagens
assim tão estranhos aos falantes da língua portuguesa, que a narrativa desse
romance se passa nos confins da Islândia, espaço pelo qual o escritor
desenvolveu uma larga experiência afetiva. Outro dado que pode ser esclarecedor
para a Ieitura do romance parte dessa relação com a perda parental; tem ela uma
ligação ressaltada por Mãe na nota posta ao fim do romance sobre a perda de seu
irmão Casimiro, que morreu muito antes do nascimento do escritor. A ideia de
espelhamento do eu experimentada pela similitude fraterna teria nesse
acontecimento pessoal certo motivo criativo na construção da trama do romance
em questão.
E já aqui estamos diante de outro tema exercitado ao longo
da produção romanesca de Mãe: o da alteridade. No instante em que acompanhamos
a epopeia errante da menina Halla, o que estamos em contato é com a descoberta de
si, sobre o mundo e sua relação com o outro. Tal e qual o benjamim de o nosso reino ou o baltazar de o remorso de baltazar serapião, para recordar
dois dos primeiros títulos do escritor, Halla, criança sozinha, mal quista pela
mãe e só admirada de perto pelo pai, é também personagem à procura de si;
relação desenvolvida a partir do trauma da perda, de sua condenação ao
silêncio, da resignação pela mortificação do corpo e depois pela entrega extenuada
ao único homem solteirão do vilarejo, Einar.
Nessa empreitada um tanto existencialista, convém sublinhar
a escrita a modo de ensaio – este romance tem muito da perscrutação e da reflexão
costurada pela voz da narradora – subverte-se um princípio básico da filosofia sartreana.
Do extenso exercício intelectual do existencialista Jean-Paul Sartre, logrou-se uma expressão que se tornou
pilar de seu pensamento: “O inferno são os outros”. Para o pensador francês a dependência
necessária do eu para com o outro e a potência de impossibilidade sempre
colocada pelo outro na concretização de minha existência faz do eu impasse
entre o que sou e o que poderia ser.
Recortando certo egocentrismo que escapa dessa ideia existencialista,
assim se pronuncia o pai de Halla, poeta e subjugado às obsessões da sua
companheira que não atribui valor algum ao exercício da palavra – “O inferno não
são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é
apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em
ti.” Expressão que, mesmo ressaltando o conflito entre o eu e o outro cunhado nos
termos sartreanos, destitui o outro de um lado negro da existência. Sim, o
homem por si só não pode conhecer-se em sua totalidade – é isso o que existencialismo
de Sartre diz – mas o outro é todo problema.
Ainda marcando outros temas que este romance recupera é
notório o trabalho de elaboração de um imaginário sobre o feminino, elemento com
que o leitor se depara em todos os romances de Mãe, sobretudo, em o apocalipse dos trabalhadores, por
exemplo. “Todos me falam de passar a ser mulher e o que isso significava de
perigo e condenação. Ser mulher, explicavam, era como ter o trabalho todo do
que respeita à humanidade. Que os homens eram para tarefas avulsas, umas
participações quase nenhumas. Serviam para quase nada.” Halla, no mesmo instante em que se vê como protagonista, porque,
de fato, é esta a história das mulheres, percebe-se marcada pela destituição genesíaca
de condenação da mulher à de suportar as dores da humanidade. E de fato,
torna-se mulher para ela, alargará ainda mais suas agruras. Ela, entretanto, é
a que não se rende. E se, o romance está atento ao processo de recrudescência
da humanidade, daí o título, ela, a personagem, se destaca como a detentora de
uma centelha de esperança.
Ao citar a ideia de condenação genesíaca da mulher, tocamos num
tema que é novidade na prosa de Valter Hugo Mãe: o da relação do homem com o
Criador. Mesmo que em outros textos encontrássemos diante de alguns elementos
que marcam esse extenso debate – como é caso em a máquina de fazer espanhóis – as reflexões aqui se apresentam mais
depuradas e constituem mesmo numa linha de força dialética, isto é, não há esforço
nem de afirmação nem de negação sobre a existência de deus (é assim que se
grafa no texto). Talvez deus seja essa intermitência entre a afirmação e a
negação. “Descobrir o nome o significado de deus não compete a ninguém. Repeti:
descobrir o nome e o significado de deus não compete a ninguém. Deve dar-nos
medo a necessidade de o entender. Deve dar-nos medo a necessidade de entender
deus. Ele é o desconhecido, se porventura se der a conhecer então é uma
falsidade.”
Por fim, permitam que observe mais duas recorrências: a
penúltima delas é o discurso da mutilação. Que o corpo é um dos elementos mais
salientes na prosa de Mãe, todos os que o leram atentamente já terão percebido;
e é natural se estamos diante de uma narrativa sobre a alteridade. Entretanto,
o escritor português parece interessado em perscrutar outros modos de representação
do eu na literatura. E como se fosse insuficiente um discurso sobre o
estilhaçamento do sujeito, o tema ganha outras formas de construção. Dentre elas,
escolhe justamente a mutilação como se quisesse nos colocar como observador
muito próximo a dor dessa desarticulação. Nos dois primeiros romances, por
exemplo, mesmo estando situado cada um em contextos sobre os quais o tema não estava
em voga, já a mutilação é empregada pela narrativa de Mãe como esse exercício
sobre a mutilação do eu.
E a última, a narrativa como um experimento poético. A desumanização acentua mais ainda o
lirismo que já presenciávamos em romances anteriores. Aqui, o escritor demonstra
in loco essa depuração da linguagem
através da repetição – conforme a citação acima que recortamos e conveniente em
diversas passagens da narrativa; como se ele próprio se desse ao trabalho de
expor essa cartilha do narrar, mas também quisesse deixar à mostra as costuras
do texto. “O pior amor é este, o que já é feito de ódio também. O pior amor é
este, o que já é feito de ódio também. O pior amor é este, o que já é feito de
ódio também.” Além da reflexão sobre a natureza da linguagem – elemento que
aqui ganha outra dimensão, por vezes labiríntica tais quais os fiordes tanto
citado ao longo do romance.
Ainda em tempo, é importante observar como o escritor
traduziu seu olhar estrangeiro sobre a Islândia num romance pensado e escrito
em português. Se em textos como o Budapeste,
de Chico Buarque, por exemplo, o estranhamento é dado pela distância linguística
assumida pela personagem principal – e o escritor brasileiro consegue expor com
maestria essa relação – em A desumanização
não é diferente. Valter Hugo se apropria do imaginário islandês e com ele
engendra a atmosfera do romance e a relação entre a personagem principal e seu
lugar; entram nesse rol de especulações as lendas sobre as montanhas, os dragões,
a relação do islandês com a terra.
Os retornos, logo se vê, vão compondo um mapa das obsessões de
Mãe. Mesmo que este romance assuma uma direção que o aproxima do ensaio – esta é
a inovação do escritor dentro de sua própria literatura, não é este,
entretanto, a forma como se realiza seu trabalho. Ao eleger um tema de
interesse, o que ele perscruta vem pelo estranhamento constante com a palavra e
a necessidade igualmente constante de poetizá-la. A desumanização é um romance por imagens; produto de um exercício imaginário
potente, se firma como um dos melhores da literatura de Valter Hugo Mãe.
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