Trapaça, de David O. Russell
De alguma maneira, a crise por que atravessa o capitalismo
enquanto modelo social, sua insustentabilidade e os indicativos de falência –
ou as causas da falência – têm servido de mote para parte das narrativas cinematográficas
do final de 2013 e início de 2014 produzidas por Hollywood. Se fizermos uma
leitura panorâmica pelos filmes que comentamos aqui nessa safra logo
localizaremos uma amostra significativa: O
Lobo de Wall Street, injustamente esquecido pela Academia na última edição do
Oscar; Capitão Phillips; Blue Jasmine; e Trapaça, de David O. Russell, autor do patético O lado bom da vida.
O filme de agora funciona como uma espécie de redenção,
incorporando algumas lições caras ao cinema hollywoodiano, como uma boa
história, ainda que os diálogos fiquem sempre a desejar. Além disso, O. Russell
parece colocar de lado o romance açucarado e investir numa história mais
próxima do empírico – revestida de um humor decente, uma pitada de tragédia,
doses de neurose e uma crítica social um tanto aguçada.
Se tem algo que me chama atenção em produções como as que
citei e Trapaça está aí incluída e a
imagem desencantada que os cineastas têm dado sobre os Estados Unidos; mesmo o típico
herói estadunidense se mostra um tanto mais amarelado questionando o sistema de
opressão capitalista. No caso do filme de David O. Russell, toda aquela
atmosfera de enriquecimento a todo custo, algo como em O Lobo Wall Street, deixa escapar certa displicência do país para
com o alargamento das fronteiras financeiras, certamente movido pela mesma ganância
com que se move Melvin, personagem interpretada por um Christian Bale que
esconde a careca tanto quando pode com efeitos capilares e se mostra de grande
barriga, incorporando traços de um capitalista desleixado cujo único interesse
é o lucro pelo lucro.
Descoberto como um senhor falcatrua pelo FBI, num tempo em
que escândalos de corrupção e caixa dois era café pequeno na política
estadunidense (e tanta gente iludida lá e cá com a retidão estadunidense!),
Melvin e sua fiel trambiqueira estarão condenados a servirem de isca a título
de por a nu os dólares que rolavam por baixo da mesa nas negociatas entre
iniciativa privada e governo. O desfecho desse jogo de gato e rato – é nisso
que a trama se transforma quando, por uma via ou por outra, os dois se veem
forçados na cooperação das investigações – é o que sustenta o título do filme. E
até sua chegada, tudo é bem construído, como se diretor pegasse pela mão do
telespectador e o colocasse num extenso tabuleiro de xadrez onde quem ganha não
é necessariamente um bem ou um mal, mas o mais esperto, justificando assim o
tipo de sistema no qual andamos metidos.
Gosto do modo quase artificial e caricato – como um deboche –
com que as personagens são montadas; com que a realidade é montada. Nesse processo,
o que se preserva é apenas o gosto por fazer valer na tela um fato histórico, a
operação Abscam, de fato, existiu em 1978. O filme tem assim uma base histórica
muito forte mas é bem aproveitada pelo roteirista sem que a narrativa fique
densa a ponto de nos levar ao tédio ou cansaço, sensações que nos acompanham,
por exemplo, noutro filme com jogada do tipo, Lincoln. É evidente que no filme de Spielberg a situação é outra e
o momento histórico também.
Em Trapaça, por
exemplo, David O. Russell se beneficia de toda uma efervescência cultural,
transposta no figurino extravagante ou na trilha sonora escolhida a dedo. Elementos
que somado com a época de ouro das discotecas reconstituem uma memória muito
peculiar de um tempo situado entre o estouro da descrença na conjuntura
política do país e em simultâneo, com o avanço das investigações sobre os
crimes de corrupção, a reelaboração de uma nova esperança no futuro do país –
ainda que tudo seja só o misto de uma realidade um tanto perdida no plano da
utopia.
O título Trapaça não
apenas se refere ao momento de exato desfecho ou mesmo o andamento da narração.
Está em todas as situações – sempre supostas, fabricadas. Quando o
telespectador se dá conta está diante de uma realidade que é fajuta: desde o
malandro careca que usa de tudo para se passar por dono de uma cabeleira, à
caipira que finge ser britânica ou o filhinho da mamãe que acredita ser um
superagente secreto e se vê, envolvido, tanto com o mundo da picaretagem que é tão
ou mais picareta que os verdadeiros sujeitos do ramo. Isto é, o que o filme
parece querer é mostrar aquilo que está por baixo do modelo ideal ou perfeito
de vida. Ou por à prova aquilo que Pedro Almodóvar põe abaixo no seu último
filme – Os amantes passageiros: no
fim, de mentiroso, todo mundo tem um pouco. E a realidade não seria suportável,
nem a vivência entre pessoas, se não fosse as mentiras que contamos uns aos
outros e para nós mesmos.
O fato é que Trapaça não
se sobrepõe a nenhum dos filmes que comparei por aqui. Isso não só porque O.
Russell tem uma linguagem peculiar para tratar sobre o que trata como não tem
fôlego para fazer valer o castelo de situações que monta para fazer andar a
trama do filme. Mesmo quando comparado a títulos como o de Scorsese, sua referência
mais direta. O lobo de Wall Street é
melhor. Ao menos tem mais fôlego. E os golpes e reviravoltas estão sombriamente
envoltos por jogo de dominação psicológica que remove da vida das pessoas
qualquer forma de crença superior e a substitui pelo poder do capital. Em Trapaça o capital é, sim o grande impulsionador,
o centro da vida dos envolvidos no extenso jogo de aparências. Entretanto, ele é
mera pulsão. Venenosa tanto quanto no primeiro caso, é verdade, mas, mais um
jogo em que todos, uma vez aí situados, passam por uma necessidade de provarem
para si a própria mentira em que estão mentidos. O resto é puro deboche, como
os decotes, os penteados, os comportamentos excêntricos dos tipos forjados pelo
diretor.
Mas o capital não é essa festa toda.
Comentários