Sobre ser sem definição e a autonomia da mulher
Por Rafael Kafka
imagem: Alberto Tina Cunha |
Estava sem
ideia para falar na crônica dessa semana, porém dois fatos importantes
ocorreram e eu logo pensei em um tema interessante.
O primeiro
fato interessante se deu quando resolvi sair com uma amiga que não via há
diversos meses para conversar e, por conta de uma pequena demora dela em
aparecer, resolvi parar em uma livraria de um shopping de minha cidade e mesmo
muito preocupado com as minhas dívidas, resolvi comprar Ser e Tempo, de Martin
Heidegger. Em minha mente, era preciso comprar tal livro, pois há anos fujo da
tarefa assustadora de lê-lo, por conta dos discursos dos ditos especialistas que
em certos momentos de insegurança adquirem muita força em minha mente. O certo
é que tal investimento se deve principalmente ao fato de que em minha curta
vida intelectual eu preciso superar mais essa missão.
O segundo
passo veio de uma lembrança tida em meio à leitura do ensaio de fenomenologia
acima citado. Enquanto tomava água, lembrava que mesmo estando no carnaval eu
precisava entregar um texto para o blog do Letras in.verso e re.verso ainda
nesta semana, e não tinha sequer uma ideia do tema que deveria fazer. Foi então
que vi uma propaganda política de um partido dando a sua visão do ser mulher em
homenagem a essa tão importante data em nosso calendário e, irritado pelo
essencialismo do discurso da propaganda, decidi escrever sobre o que considero
para mim como o conceito de feminismo.
Faço isso,
pois o Dia Internacional da Mulher surgiu como forma de lembrar um fato trágico
que ocorreu enquanto mulheres lutavam por melhores condições de vida em uma
fábrica e, de forma covarde ao extremo, foram mortas em um incêndio criminoso.
Considerando tal ato como feminista, por defender as mesmas condições de
trabalho para homens e mulheres e o respeito da mão de obra humana, não
importando o seu gênero, fico estarrecido de ver o imenso sexismo que existe na
comemoração do Dia Internacional da Mulher.
Desde antes
de ler Simone de Beauvoir, irritava-me ver comerciais de TV falando da mulher
como uma criatura una. Toda mulher nesta época do ano se torna maravilhosa,
guerreira, dedicada, fiel, delicada, poética, enfim: toda mulher se torna um
ser cheio de virtudes. Durante muito tempo, comecei suspeitar de ser um sujeito
misógino, com ódio das mulheres. Mas o que eu sentia na verdade era um desprezo
por essa imagem construída das mulheres, pois em meu dia eu via mulheres que
eram delicadas e maravilhosas, mas não guerreiras, por exemplo. Ou via a mulher
guerreira em nada ser delicada...
O que eu
via em meu dia-a-dia eram seres humanos repletos de matizes muito profundos,
tênues, vivos. O que eu via diante de mim eram criaturas muito além de qualquer
definição. E aqui entra Heidegger.
Após ler
umas linhas suas na qual ele fala que o ser da presença, o ser humano, é um ser
além de qualquer definição pré-determinada de ser, entendi que de forma
intuitiva desde muitos anos atrás eu não engolia a forma como se referiam tanto
a mulheres quanto a homens, dando a entender que mulheres são de um jeito e
ponto, e homens de outro. O assunto está acabado e todos somos felizes com
nossas essências imutáveis.
Por mais
que a lógica dos fatos demonstre o contrário, as pessoas têm essa tendência a
crer em papéis sociais pré-fabricados. Em acreditar que sua forma de ser é um
axioma, uma verdade incontestável, e que os atos seus que fogem de tal
definição precisa e inabalável são na verdade acidentes. A essência, a
substância está ali, viva, cheia de força e todos os nossos pequenos gestos que
contradizem tal essência são na verdade desvios de caminho os quais logo devem
ser consertados.
Ainda bem
no começo de Ser e Tempo, mas já entendo a relevância de se estudar de forma
correta a questão do ser: um ser sem definição prévia é um ser livre, um ser
incapaz de se prender em rótulos. Desse modo, tal ser rompe sempre seus limites
não aceitando como premissas verdadeiras aquilo que uma suposta essência daria
a si. Um ser sem definição é livre para lutar por seus direitos e para
percorrer os caminhos que escolher.
Comecei a
ler Heidegger depois de ler seus seguidores Simone de Beauvoir e Jean-Paul
Sartre. Porém, lendo-o agora tenho uma visão bem clara das aplicações que esses
dois últimos fizeram de sua forma de entender o ser. Sartre dizia que o ser
humano é condenado a ser livre. Simone aplicou de forma silogística o mesmo
enunciado às mulheres, estudando a sua condição e mostrando como a opressão do
patriarcado as ofende em direitos tão fundamentais a elas que já são rotina
batida no cotidiano masculino, como o direito de manter relações com quem e com
quantos quiser, além da possibilidade de tomar uma cerveja em um bar sem ser
incomodada. É avaliando a condição feminina em sua concretude que percebemos
bem que mesmo elas tendo o mesmo nada de ser no lugar de uma essência, assim
como o homem, que suas atitudes ainda são muito limitadas por conta de uma
concepção do ser feminino que o prende de uma forma implacável.
*
O feminismo
se tornou para mim uma questão óbvia quando descobri que todo ser humano é
condenado a ser livre. Somos seres-para-si, seres vivos em sua plena
possibilidade. Somos nossa possibilidade, somos o que escolhemos ser dentro dos
obstáculos impostos pelo mundo. Sempre achava nojo de posturas machistas
propostas por homens que diziam que eu deveria agir deste ou daquele modo para
ser um homem. Não entendia como eu, um ser individuado, poderia agir conforme
uma moral de grupo simplesmente para pertencer a esse grupo.
Tendo a
maior parte de minhas amizades como sendo femininas, passei a entender a cada
dia que não havia uma essência feminina. O que havia de comum no comportamento
feminino como pertencente a uma “identidade” era isso mesmo: uma conduta
culturalmente imposta a seres sem órgão fálico. Àquele saber intuitivo, foram
se unindo o conteúdo de livros existencialistas que me mostraram a noção de ser
livre, transcendente na imanência, sendo os seus projetos, assumindo-se a cada
momento enquanto escolha.
Claro que
no começo o meu feminismo era tolo, pois queria cobrar um descolamento de
mulheres próximas a mim de suas falsas identidades (como eu as via) sem
entender as suas situações de vida e de luta. Aos poucos, comecei a entender
que as imagens propostas pela reificação de valores patriarcais levavam os
seres não apenas a fazerem estas ou aquelas escolhas, mas a criarem verdades
profundas demais em suas mentes a ponto de surgirem enquanto leis absolutas da natureza, uma essência.
Ademais, as situações em que tais seres estavam imersos era caótica demais e a
luta era assustadora, mesmo que o direito reclamado fosse simplesmente namorar
na praça com um rapaz escolhido por ela mesma.
Passei
entender então como o machismo criava situações de dor tanto para homens quanto
para mulheres, pois todos somos forçados a seguir os tais papéis de gêneros,
tendo consequências muito sérias em certos momentos caso fujamos da lógica de
tais papéis. Ontem mesmo compartilhei em meu Facebook como um garoto foi morto
por não se adequar à imagem de homem tida por seu pai psicótico, já que tal
imagem não incluía, por exemplo, o gosto por lavar louças...
Hoje, tenho
uma visão mais sólida no tocante ao meu conceito de feminismo, contudo sei que
ainda preciso crescer demais para me livrar de vez das manchas machistas
existentes em mim. Todavia, a minha visão de uma luta por direitos iguais para
ambos os gêneros perpassa pelo seguinte fator: todos, homens e mulheres, somos
seres-para-si, somos seres que somos sem ser plenamente, somos seres livres
para escolhermos os nossos caminhos. Imagens que dizem o que devemos fazer e
como devemos agir por sermos homens ou mulheres devem ser destruídas por meio
de leitura, estudo e dialética. Somos grandes demais para sermos determinadas
por formas de ver o mundo que oprimem e servem de justificativa para gestos,
verbais e físicos, de ódio, violência e morte.
Dou-me o
direito, assim como Sartre se deu ao falar do existencialismo, de julgar esse
feminismo o mais coerente. Simone de Beauvoir disse que um homem jamais saberia
o que é ser mulher e concordo com ela. Não sei o que é ser um negro africando,
nem o que é ser gay, muito menos o que ser uma mulher. Porém isso não me impede
de tomar partido em suas lutas. Digo isso, pois há em muitos discursos
feministas atuais a lógica de que todo homem é um machista em potencial, o que
em si não está errado; porém o complemento dessa lógica é a exclusão de todo e
qualquer ser humano do sexo masculino de movimentos feministas, pois para as
mulheres dessa ala radical todo homem quer ser protagonista da luta assim como
já é protagonista da dominação...
Apesar da
opressão feminina jamais ser sentida por um homem, isso não impede o feminismo
de abarcar homens em suas mesas de debate e frentes de luta, por motivos muito
básicos: 1) o recaimento em essencialismos e sexismos que tal atitude indica de
forma implícita; 2)o gênero masculino, de modo diferente, também é agredido
pelo patriarcado, pois há muitos homens que assumem responsabilidades de
“macho” sufocados pelas exigências da essência masculina inventada; 3)um homem
que se presta a estudar feminismo acaba se tornando uma pessoa livre da imagem
de homem tida como a ideal pelo patriarcado, e assim o processo de emancipação
da mulher acaba se tornando mais sólido, pois os homens se conscientizam de que
todos somos nada em nossa essência, e por isso somos livres para sermos o que
quiser sem nos preocupar com papéis de gêneros forçadamente vividos.
Penso que
emancipação feminina perpassa pela emancipação dos homens de seus próprios
grilhões conceituais.
*
Entendendo
o ser do ser humano como algo livre, sem definição, não dado, vivo em suas
próprias possibilidades, chego então à necessidade de assumir uma coisa: tenho
muita reserva, para não dizer desprezo, quanto ao modo como se comemora o dia
internacional da mulher. Nesse dia, os comportamentos sexistas em relação à
mulher ficam mais evidentes e fortes, com uma série de discursos que enfatizam
a essência feminina em seu lado belo e fofo. Se no decorrer do ano, a mulher
ainda é vista como um ser submisso ao homem em diversas formas, agora a mulher
é vista como guerreira, delicada, vibrante, firme, forte, etc. As mulheres se
tornam uma única mulher, cheia de qualidades e pureza, como as antigas deusas
presas em seu papel meramente reprodutor e adocicante da vida.
O dia das
mulheres é uma data para se entender como se encontra a condição feminina e
como se deve proceder de vez para que os seus grilhões sejam destruídos.
Todavia, nossa sociedade a transforma em comemoração, festa, e vê-se muitas
mulheres cobrando parabéns pelo simples fato de serem mulheres, sem nem sequer
entender como se criou tal data e por qual motivo... Para piorar, as mesmas
mulheres que exigem para si todas as homenagens nesse dia são criaturas que não
sabem entender que feminismo não é o contrário de machismo...
No final
desse texto, gostaria de dizer que a todas as mulheres que entenderam o que
falei acima sobre o conceito de ser e sobre sua autonomia, eu lhes agradeço. E
dou meus parabéns a todas mulheres, cis ou trans, que destruíram as imagens
feitas para definir sua essência e seu modo de ser. Não existe um eterno
feminino, não existe um modo de ser feminino. O organismo humano é diferenciado
em seus dois gêneros e pronto. Dentro dessa situação, todos devem ter direitos
à liberdade assegurados plenamente vividos.
A primeira
forma de se libertar um ser é fazê-lo entender que ele é nada, portanto livre.
Nada significa poder ser tudo, ser o que se quer ser. Homens são nada. Mulheres
são nada. Homens não são brutos, broncos, pegadores, comedores, etc. Mulheres
não são vadias, frágeis, delicadas, poéticas. Ambos os gêneros são e não são
isso. O mais importante, no fim, é dizer que eles são o que querem ser. Só
precisamos entender isso e perceber o imenso de mar que estamos deixando de ver
quando rotulamos atitudes baseadas no simples fato de alguém ser homem ou ser
mulher.
Aceitando
que somos sem definição, tornamo-nos livres.
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