Robocop, de José Padilha
Por Pedro Fernandes
Primeiro foi o torpe Tropa
de elite que pelo estardalhaço de bilheteria se tornou uma pequena franquia
com dois filmes: o primeiro, munido de uma forte política do denuncismo acorda
sobre a corrupção na Polícia Militar; o segundo, dotado do mesmo motivo do
primeiro, mas mais agarrado a uma politicagem barata, aponta uma macroestrutura
das corruptelas no Brasil. Ambos os filmes são medianos, mas o forte apelo
popular – pelo tema tratado e pela linguagem despretensiosa – fizeram do seu
diretor, José Padilha, e de atores como Wagner Moura (já conhecido por papeis
melhores do que o Capitão Nascimento), saírem da surdina e projetá-los
internacionalmente.
Não fossem esses filmes que aliás vendem uma imagem bastante
esgarçada do país, a direção da releitura de Robocop pelas mãos do brasileiro nunca tinha acontecido; como nunca
teria acontecido se, em maior proporção, o Brasil não tivesse alcançado o gosto
internacional. Este texto, deveria se firmar como uma longa lista de
ingredientes que à medida que fossem saltando da tela, fossem causando no
telespectador que tem um mínimo de brasilidade correndo nas veias, ânsia de
vômito. Mas isso tomaria muito tempo do leitor e por isso prefiro me deter em
apenas alguns poucos aspectos que reforçam o pensamento de que este é uma piada
cinematográfica de mau gosto. Mesmo eu não me lembrando bem do filme anterior,
e não farei aqui quaisquer paralelos entre as produções de 1987 e de 2014,
recomendo ver a primeira versão; fará mais sentido, mesmo tendo sido a coerência
entre realidade e ficção a tônica maior utilizada por Padilha no seu Robocop.
Não me refiro aqui ao tratamento estético do filme, à construção
da narrativa, ao processo de construção da personagem de Alex Murphy, o
policial de Detroit que vitimado por um largo jogo de corrupção (Oh, esse não é
um mal só nosso! Ao menos isso alguns brasileiros desavisados poderão tomar
consciência!), é transformado numa máquina de solução implacável do crime, mas
com algum resto de matéria humana. Tudo dará certo, evidente, e mais uma vez os
estadunidenses terão outro estímulo para tapear o grande pânico secular da insegurança.
Até que, como qualquer criação que visa suprir determinações humanas, a máquina
humanoide se torne uma ameaça para o próprio criador; outra essência das
histórias de monstros reciclada desde personagens com o Frankenstein de Mary
Shelley. Tudo isso é louvável na refilmagem de Robocop. Padilha terá conseguido fazer a personagem de 1987 mais
real e mais humana, graças aos sofisticados recursos do cinema hoje.
Mas, o que é incomoda nesse filme é a incapacidade de
autonomia – para não dizer a incompetência do diretor – em imprimir uma
consciência política mais arrojada e menos imperialista. Parece que a ganha
aqui todos os limites da estranha cartilha já ensaiada por Padilha nas produções
nacionais. Tudo, entretanto, ganha uma dimensão infinitas vezes mais aumentada
para reforçar o discurso da prepotência e da arrogância estadunidense construído
a largo tempo e posto em prática nas desastrosas ações de democratização ao redor
do mundo. Algumas delas, é bom que se ressalve, ainda em pleno curso hoje.
De modo que o que Robocop
ganha de realismo pela forma de sua criação,
ganha, não a personagem, mas a narrativa, doses cavalares desse propósito espúrio
dos Estados Unidos. Noutras palavras, Padilha assume, de vez, sem máscaras, o
seu lugar político: está o diretor controlado, mas muito à vontade, por uma
estrutura mental ultrapassada através da qual só há, no mundo, uma nação promissora
da liberdade (quando sabemos do discurso tosco que é este do freedom spirit): a estadunidense. O futuro
do Robocop é o futuro sombrio de uma nação
que tem total liberdade para intervenções de toda ordem (ou de ordem maior e
mais espúria que atualmente) sobre os países do Oriente Médio e pasmem (!) na
América Latina, incluindo (oh céus, que nem a na ficção isso pode ser verdade!) o Rio de Janeiro.
Padilha produz um filme unilateralista. Aconteça o que
acontecer, a única salvação está nos Estados Unidos. A personagem feminina do
filme, a mulher de Alex, por exemplo, poderia ser melhor explorada e desenvolver
como um contraponto interessante que faria a narrativa dar um salto sem precedentes
em qualidade; afinal é ela quem, obrigada por esse poder que subestima todo e
qualquer sentimento alheio em detrimento de suas próprias ambições, é
ludibriada para que OCP ponha em prática sua estratégia empresarial de manipulação
da opinião pública em detrimento de uma nova política de segurança nos Estados
Unidos. Quando isso pode acontecer, essa personagem não ganha a dimensão
merecida na trama e, de uma hora para outra, é totalmente submissa em nome de
um amor sem precedentes ao companheiro, e logo está totalmente assente ao interesse escuso do poder que domina
tudo e todos.
É evidente que toda a questão imperialista já fora tematizada
na história original, mas o que está em questão aqui é contexto atual no qual
essa ficção científica é reescrita. E por quem ela é reescrita. Se a estrutura
estética da história é totalmente refeita, então não faz muito sentido que seja
preservada a mesma matriz política do original. Ou será que faz? A história, assim, se torna
defasada. Ir apenas numa mesma direção de subserviência dos discursos quando se
tem o poder em mãos para refazer a história não é colocar o trabalho artístico
na posição que deve ser sempre a de denúncia e de suspeita acerca do porquê das
coisas. Ao assumir apenas uma mesma direção discursiva pesadamente panfletária em
nome de uma ordem mesquinha e escusa é reduzir o trabalho artístico à ordem
dominante. E sei de gente que vibrou saindo dos cinemas encharcado daquelas intervenções conservadoras da patética personagem de Samuel L. Jackson.
A personagem de Alex Murphy pode até ter se humanizado mais,
mas seu recriador é quem assumiu a postura de homem-máquina, pouco dado a
pensar e somente a repetir aquilo que a ordem de mando espera que repita. Nessa
perspectiva, o próprio sentido de crítica à ordem impresso no filme original,
por exemplo, fica perdido.
Comentários
belo texto, muito bom mesmo.