Poemas reunidos, de Ivan Junqueira
Por Rafael Kafka
Ivan Junqueira. Foto: Fábio Seixas. |
O livro Poemas
reunidos (Editora Record) de Ivan Junqueira reúne uma boa parte da obra poética desse ser humano
fascinado pela morte, pelo simbolismo, pelo devir e pela vida. No volume que
tenho em mãos, podemos encontrar sete livros de poemas, todos girando em torno
do passar irremediável do tempo. A poesia de Junqueira é bela, mas em certos
momentos se torna cansativa devido ao vocabulário pesado utilizado pelo autor,
que além de poeta é ensaísta e tradutor de célebres nomes da literatura mundial
para o português, como Charles Baudelaire e T. S. Elliot.
Antes de
falar especificamente de minhas impressões de leitura sobre o conjunto de
livros acima citado, vale ressaltar que esta é a primeira resenha que faço tanto
para este blog quanto para qualquer espaço sobre algum livro de poesia. E falar
de poesia é difícil por ser aparentemente fácil. A poesia é muito imagética,
mexe mais com nossas sensações do que com nossa leitura verbalizada em si. A
prosa mexe mais com nossa capacidade de pensamento racional e por isso gera
mais facilmente possibilidades interpretativas, pois de certa forma nos prende
em certas cadeias de significados. Já a poesia nos dá uma liberdade por demais
grande e muitas vezes não sabemos por onde começar e terminar o texto.
Alguns
críticos de poesia enfatizam o estilo do poeta: os seus recursos, as figuras de linguagem exploradas, as rimas e seu ritmo etc.; outros preferem
avaliar mais o plano da significação mesmo. Mas por ser a poesia algo bem mais
imagético do que a prosa imagino que tais críticos estejam em menor número.
Como sempre fui muito néscio em se tratando de avaliar recursos mais plásticos
da poesia e de qualquer outra forma de arte, a sua técnica em si; falarei mesmo
do plano significativo o qual se localiza mais dentro de meus domínios.
A poesia de
Junqueira é uma poesia de fortes traços simbolistas. Vemos nela a presença
forte de analogias e comparações que visam ao aumento da carga semântica de
termos mais ou menos presentes em nosso cotidiano. Digo isso, pois em
diversos momentos vemos aparecer figuras presentes na mitologia grega. Porém, a
marca mais forte de Ivan é a morte. A poesia deste escritor tem como principal
obsessão falar do caminhar irremediável da vida para um fim que a tudo marca.
Para quem já tem algum domínio de Heidegger e entende o conceito de
ser-para-a-morte fica claro um sentimento de angústia frente a um momento
terrível e inevitável que ao mesmo tempo que justifica a vida também a torna
algo minúsculo e patético. Nesse sentido, as rimas de Junqueira dão um
melancólico, triste, soturno à poesia, mesmo quando ele fala de paisagens
cheias de vida e colorido. Muitos poemas, principalmente os localizados em “A
Sagração dos Ossos”, último livro do conjunto de textos, falam do corpo humano
decomposto como forma de mostrar a vida como algo fugaz e sensível.
Esse punhado de ossos
Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ali, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos não choram.
Percebemos
na primeira estrofe a vida como algo individualmente vivido e sentido. A vida
como algo intenso, cheia de atos e prazeres. Na segunda, vemos a morte mostrar
suas cartas e igualar todos em um mesmo paradigma existencial: somos iguais por
sermos finitos. Na terceira estrofe, isso fica ainda mais evidente mostrando
como não importa qual a classe social todos iremos afundar no limbo da morte um
dia.
Outro poema
bem interessante sobre a morte é o que segue:
No leito fundo
No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,
longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;
longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;
longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças
de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;
longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.
Há contudo
espaço para outras temáticas em sua poesia. O amor, por exemplo. Mas aqui não
vemos um amor cheio de ternura inocente. O amor é erotizado de forma ao mesmo
tempo sutil e intensa como vemos no poema abaixo.
E se eu disser
E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.
Vemos nesse
poema, o amor diretamente ligado à libido. O sexo aqui é visto não como forma
de obtenção de prazer gratuito, mas como forma de união de corpos que se amam e
se desejam ao mesmo tempo. Vemos também a construção metafísica da imagem do
ser amado no primeiro terceto e a dor insuportável nos últimos versos.
A poesia de
Ivan Junqueira é, pelo que vemos acima, uma poesia de beleza acre e dolorosa.
Por isso mesmo, viva como a vida.
Há também
espaço para alguns poemas de caráter metalinguístico.
O Poema
Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?
Que será, se há lama
no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um drama?
Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que algema?
Os últimos
versos indicam bem o dilema do artista que busca ver na arte uma forma de
libertação e de expressão, mas acaba se sentido preso a ela e à dor relatada no
desejo de obter liberdade. A arte é um ciclo que expressa, principalmente,
aquilo que há de dolorosamente pungente na vida sem conseguir curar
perpetuamente a dor causada. Nisso, a poesia segue sendo feita como um vício
que não levará a lugar algum ao mesmo tempo que parece se bastar a si mesmo.
A poesia de
Junqueira possui uma dimensão existencial bastante forte. Não diria
existencialista, pois sua linguagem difere demais de escritores como Clarice
Lispector. Mas aí é apenas uma leitura rasa que deve ser aprofundada para
melhores juízos. O que fica como mensagem é que apesar da dificuldade e do
clima turvo e sombrio, Ivan Junqueira merece ser lido atentamente como um poeta
de marca maior que consegue aliar bem aspectos etéreos e concretos da
realidade, além de um clima clássico com técnicas arrojadas de composição.
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