“Não
consultes dicionário”, nos diz Bentinho a respeito do significado do seu
apelido, D. Casmurro. Hoje em dia sabemos: o relato do protagonista do clássico
de Machado de Assis tornou-se tão suspeito que devemos fazer justamente o
contrário do aconselhado.
A consulta
de dicionários acaba sendo também uma consequência da leitura de José Luiz
Passos (vou utilizar um chavão — perdoe-me, leitor, mas se trata da mais
pura verdade: ele é uma das maiores revelações literárias dos últimos anos),
não que ele tenha nada de preciosista do idioma: em
Nosso grão mais fino, o protagonista é um químico, cuja família
acabou perdendo as terras de que era proprietária, e nas quais se produzia
açúcar. Entre outras “esquisitices”, por assim dizer, ele nos impinge um irmão
imaginário (Zelino), com quem manteve intensa relação, para além da infância.
Suas reminiscências são pontuadas, alternando-se com estranhos diálogos com Ana
Corama, a amada, que amiúde parecem mais recitativos, onde cada um está
isolado em si mesmo.
Lemos: “Como
um químico deve misturar seus muitos materiais?” Acompanharemos os
desencontros entre Vicente e Ana, filha do antigo dono do engenho (que
teria se matado, atirando-se de um zepelim durante uma travessia do Atlântico),
“tomado” pela família dele. Ele e o tio materno, de idade muito próxima,
Gaetano (que será o marido dela) transformam-se nos descendentes derradeiros
das duas linhagens, os Campelo e os Dueire. Também veremos o termo
“maranha” muito utilizado. No Aurélio: “porção de fibras ou fios
enredados; crespidão, grenha; coisa intrincada, emaranhamento, enredo,
complicação, teia; intriga, embrulhada, confusão; conluio, pacto; astúcia,
esperteza; manha, velhacaria”. O talentoso autor pernambucano não deixa suas
palavras ao acaso: o leitor
de Nosso
grão mais fino encontrará tudo isso: um narrador autoproclamado
“caviloso” (portanto useiro e vezeiro de manha, astúcia); todo o emaranhamento
dessas vidas ligadas — atávica ou passionalmente; sequer falta a conotação
ligada a cabelos, uma vez que, anos depois do seu caso de amor, Vicente e Ana
encetam uma jornada a Santo Antão, a propriedade perdida, e o clímax é um
ritual em que ele cortará os cabelos dela, ali mesmo, no carro, quando desistem
de ir até o fim da empreitada nostálgico-purgativa.
Vicente
especializa-se em zimotecnia. No relato está explicado: o estudo da
fermentação. No verbete dedicado a este último vocábulo, encontramos: “Transformação
química provocada por um fermento vivo ou por um princípio extraído de
fermento; efervescência gasosa; efervescência moral, agitação, comoção,
ebulição.” O que pensar da presença de Ana Corama, efervescendo e agitando esse
clã gorado, o que pensar de um trecho como: “Hoje estou sozinho, sei. Zelino
pode ser que não tenha existido da maneira como falo dele, mas tudo que volta
pela comoção, retorna com a força dum segredo turbado…”? Como já disse, um
dos segredos da magia narrativa de
Nosso
grão mais fino está na perícia da escolha de palavras com
profundo impacto conotativo e associativo (experimente, leitor, pesquisar
os significados de “mascavo”, termo aparentemente óbvio e literal, numa trama
que envolve o fabrico de açúcar).¹
Esse drama
familiar portentoso (cujo cerne é, sobretudo, a questão da identidade pessoal),
em sua concentração poética, apresenta tal fermentação, tal tensão em seu
emaranhamento, que muitas vezes a sintaxe “normal” é quebrada (há várias
inversões frasais, principalmente no desafiador começo do livro), as
formulações roçam um lirismo desautomatizador da lógica da linguagem (“olho
para ela e ela me ouve” ou ainda “Você tem nos olhos o mesmo baque de seu
pai, Ana”); por isso, não é de surpreender que, na ebulição de todos esses
ingredientes e fios enredados, a parte final do livro relate uma enchente
destruidora em Recife (Vicente e Gaetano ali consomem os resquícios do
patrimônio familiar e roem a solidão dos deixados para trás), a qual parece
trazer tudo de roldão. De fato, contrariando uma afirmação de Ana Corama
(admoestando Vicente, “seu contato com o mundo é por vapores”), “Deve-se
amar sem metáforas”, ironicamente a catástrofe parece ser a corporificação
literal de uma metáfora: uma vida de coisas submergidas, de afetos e fetiches
afogados pelo Tempo.
O que vem à
tona é a desnorteante qualidade desse romance de estreia.
Notas:
¹ Todas as
considerações acima, e mais a figura de Ana Corama, me trouxeram à mente o
universo do grande escritor Osman Lins, cujo estilo (por exemplo, o de
Avalovara, seu livro mais ambicioso)
algumas vezes foi taxado de afetado. Certamente, há um quê de quase pernóstico
na voz narrativa (de Vicente) nas primeiras páginas, mas assim como em Osman,
tudo — até a suposta afetação — é funcional e necessário ao mundo ali evocado.
Muito diferente do preciosismo subliterário de uma Nélida Piñon, por exemplo,
modelo acabado de estilo
fake.
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