Obscuro Domínio, de Eugénio de Andrade
Por Pedro Belo Clara
O
retorno à análise, neste espaço de edição quinzenal, de um trabalho de Eugénio
de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, justifica-se pela significativa
diferenciação de abordagem de conteúdos (uma espécie de isotopia mais vincada) que
os anteriores títulos apresentados detêm em comparação directa com este último.
Crê-se, por isso, que uma nova visita ao universo do autor é da maior
relevância e interesse para todo o leitor que se dispõe a explorar outros
trilhos que, no fundo, compõem a imensa e preciosíssima estrada poética por
Eugénio desenhada - o seu grandioso legado literário.
Este
trabalho prima notoriamente pela diferença e talvez esse seja o prelúdio da via de justificação do título que ostenta,
uma vez que a obra se adorna de motivos, formas e imagens que, embora não sejam
estranhas à temática de Eugénio, são aqui apresentadas de um modo distinto -
quase como se o autor se decidisse a não restringir mais algo que até então
havia ostracizado, e expô-lo num trabalho que reunisse todo esse “obscuro
domínio” até então pouco conhecido. A obra, assim, pode causar um certo choque
ao leitor mais avisado e admirador, até, do trabalho poético de Eugénio, uma
vez que a própria limitação a que a sua maturação poética obriga surge aqui
conscientemente transgredida. Não só ao nível das imagens poéticas mas, como se
verá mais adiante, no que concerne ao vocabulário escolhido.
O
princípio da obra parece aludir, graças às intenções das referências
utilizadas, ao processo da criação poética e correspondente depurar de versos e
ideias. Os primeiros cinco poemas, inclusive, encaixam-se nessa óptica comum a
um leitor imparcial. No entanto, de pronto se altera a corrente de escrita para
enveredar o sentido poético por campos mais amplos e, como tal, diversos.
Conclui-se, portanto, que a unidade da obra é aparentemente fragmentária, mas
também não sobejam indícios que o poeta desejasse o contrário.
Iniciando,
assim, com os leves passos da criação do género literário em causa (de que o
poema de abertura, “O ofício”, é um excelente exemplo - "(...) recomeço,/
pedra sobre pedra,/ a juntar palavras"), com suas peripécias e naturais
incidências, a rota da leitura espraia-se pelas habituais paixões e amores
vividos, experimentados, também eles, nos “obscuros domínios” do ser. Contudo,
não cessam de sofrer as naturais crises que são a directa consequência do
retrato dos “amores sazonais” a que Eugénio tanto se referia. Sobre esse
subtema, a ideia é a de sempre: o fim do Verão traz em seu ventre o inevitável
prenúncio da morte do amor que no Outono terá o seu declínio e, enfim, no
terrível Inverno assistirá ao completo definhar daquilo que não mais será. O
belíssimo poema “As frágeis hastes” é um dos palcos onde tal intenção mais facilmente
se descortina: "Eis o outono: cresce a prumo./ Anoitecidas águas/ em febre em
fúria em fogo / arrastam-me para o fundo".
Para
além da questão sazonal, este livro é, por excelência, e em diversos momentos o
comprova, o efectivar das valências do “poeta do corpo”, nome que tão a
preceito Saramago atribuiu a Eugénio de Andrade. São, por isso, diversos os
retratos poéticos onde tal veia se faz notar, pulsando vibrante no auge do mais
depurado dos versos. Os poemas aqui reunidos, numa forma geral, também
apresentam um fortíssimo apelo à imagem, nobremente expostos no topo de numa
construção que se realiza com superior mestria. Assim, juntando estes dois
ingredientes (a inclinação para as poéticas explorações do corpo e a hábil
construção da imagem), para deleite do leitor mais entusiasta conseguem-se
poemas que primam por uma beleza de ímpar carácter. No entanto, que não se
olvide o aspecto central da obra: o trazer para a luz das mais obscuras
naturezas do ser, poético ou não. E isso comporta, de igual modo, a
transgressão vocabular que Eugénio, sem reservas, assume, nomeadamente no
retrato dos íntimos momentos partilhados a dois ("(...) abandonar-me agora/
nas ervas ao orvalho -/ a glande leve".) . Ainda assim, belíssimos passeios
literários se poderão realizar por poemas como “Os animais” ou “Nas ervas”.
Mas
o que terá levado Eugénio a transgredir os seus próprios contornos poéticos? O
escritor António Ramos Rosa, recentemente falecido, num competentíssimo ensaio
publicado em 1972 (um ano após a publicação do livro) na revista Colóquio/
Letras, coloca a mesma questão. Chega, inclusive, a lançar a hipótese de
Eugénio ser, de um modo bem paradoxal, uma "vítima da sua perfeição". Contudo,
aceita a ideia de que o poeta tenha intentado lembrar "a podridão, o estrume,
de que se nutre a delicada planta poética". De facto, para haver luz tem
necessariamente de existir a escuridão. Não se crê, portanto, que exista
realmente uma intenção de ruptura com a criação desta obra (sublinho o facto de
certos poemas ainda se formarem na habitual toada altamente metafórica, ora alegre
ora melancólica, impregnada de clareza e desejo de eternidade (com breves
recursos a elementos que lembram a cor branca, na tentativa de explorar um
tímido simbolismo ao longo da aventura poética)), mas acréscimo significativo
ao que até então tinha vindo a ser plantado - um necessário passo evolutivo na
temática do autor.
No
entanto, é verdade que os vocábulos, ao serem tão incomuns no “universo eugeniano”,
causam um súbito choque a quem neles fizer tropeçar os seus olhos. Logo na
abertura da obra, no já citado poema “O ofício”, Eugénio retrata o lento
processo de depuração poética onde impera a necessidade de varrer todos os
dejectos literários que da criação sobejam: "ranho baba merda". Como se vê, o
poeta, aqui, é directo na abordagem aos temas. E quando se pensava que tal
quebra de luminosidade, tão natural na poesia de Eugénio de Andrade, iria
prejudicar a imagem e o legado temático do autor, o acto em si apenas fomentou
uma outra abordagem ao mesmo, elaborada por caminhos claramente distintos, mas
sem que ao centro de tudo não viessem a desaguar. Em “O amor”, apenas para
citar um outro exemplo, a ideia volta a repetir-se: "inundar-te de facas,/ de
saliva esperma lume". No retrato de um explícito acto de amor, Eugénio não se
coíbe de captar a totalidade da experiência, completando-a. Assim, a
diversidade da vivência que sustenta cada poema é plenamente atingida, o que
faz deste trabalho não um mero grito que almeja chocar pudores que se assumem
irredutivelmente conservadores, mas a aberta declaração da natural dualidade de
cada acto, sentir ou construção ligados ao ofício poético e à própria
experiência existencial, por mais fundamentados que possam ser os preconceitos
a eles anexados.
Nesta
inquestionável “quebra de fronteiras”, que invariavelmente traduz a coragem do
poeta, embora os mais magníficos quadros continuem a ser tecidos, o autor
arriscou-se claramente a potencializar a criação de uma outra concepção que ao
seu trabalho era normalmente atribuída. De facto, as virtudes do “poeta da
luz”, tão majestosamente visíveis nos depurados versos que com hábil engenho
eram esculpidos e de onde irradiava, entre alegria e melancolia, a imensa luz
de um sol ora nascente ora poente, são neste trabalho diluídas na nova solução
que Eugénio apresenta. O caso dá-se, como antes se explanou, não tanto por
aquilo que o poema inspira, mas pela palavra com que foi lavrado. Esse “choque
vocabular” entre o Eugénio de sempre e o outro Eugénio que finalmente revela a
sua faceta, o seu “obscuro domínio” (parte óbvia de um todo maior), será
claramente a mais sobressaída veia de um trabalho que naturalmente evolui para
o tema do amor (os amantes e o alvo de suas paixões), com um término em jeito
de agradecimento às hipotéticas bases de inspiração para a elaboração deste
livro ("Mozart", "Lambros, em Delfos", "cotovia das bodas de Romeu e Julieta",
entre outros).
Em
todo o caso, assuma-se a diferença (e, arrisco a dizê-lo, a originalidade) que
a obra ostenta e, como recompensa final, poder-se-á dela extrair momentos que
não só denunciam a notória maturação do autor (breves evoluções e consequentes
experiências ao nível da pontuação são ténues, mas efectivamente verificáveis)
como também os melhores pedaços da poética tapeçaria que Eugénio de Andrade, ao
longo da sua carreira, foi pacientemente tecendo.
Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
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