Lewis Carroll: porque um dia odiou ter escrito Alice no País das Maravilhas

Fac-símile da primeira página da carta de Lewis Carroll em que se sente cansado pela
fama de Alice no País das Maravilhas.


As aventuras de uma menina chamada Alice que cai um buraco para sair no País das Maravilhas converteram Lewis Carroll num autor reconhecido e bem sucedido, numa celebridade de seu tempo. Tudo terá chegado ao extremo que o criador daquele fantástico relato desejou um dia não haver escrito o livro que acabou por torná-lo em lenda literária. Charles Lutwidge Dodgson, o verdadeiro nome de um escritor que desejava guardar zelosamente sua privacidade sob o refúgio de um pseudônimo, reagiu mal quando sua identidade deixou de ser um segredo. A fama pública o fazia sentir-se como um animal de zoológico, tal como lamenta numa carta que escreveu a uma amiga, documento que acaba de vir a lume por ocasião de um leilão realizado recentemente em Londres.  

“Toda esta sorte de publicidade conduz os desconhecidos a vincular meu verdadeiro nome com o livro, neste momento, quem me olha me trata como seu eu fosse um leão”, escreveu à sua confidente Anne Symonds, a viúva de um eminente cirurgião da época, numa carta fechada no dia 9 de novembro de 1891 vendida agora com um valor acima dos 3,5 mil euros. A correspondência, portanto, se passa na ocasião dos 26 anos da publicação de Alice no País das Maravilhas, uma obra que deu um giro radical na produção do então matemático e lógico até então dedicado aos livros sobre álgebra. Esse novo universo que tomava a fantasia como arma de sedução teve um choque imediato ao arrebatar uma legião de leitores, incluindo até mesmo a rainha Vitória de que se diz esperava com impaciência a publicação do volume seguinte – Alice no país dos espelhos.

Lewis Caroll preencheu seu livro de alusões satíricas a uma sociedade vitoriana em cujos espartilhos ele nunca se sentiu cômodo. O personagem real de Charles Lutwidge Dodgson teve que confrontar as indesejadas atenções daquela sociedade. Odiava a fama “tão intensamente, que às vezes quase desejaria não haver escrito nenhum de meus livros”. A  carta dirigida à senhora Symonds confirma a reticência para com a vida pública de um autor que só abandonava o lugar de retraído quando estava cercado pelas crianças, sobretudo as meninas, de quem exercitou vários esboços de desenhos e fotografias – duas outras paixões do escritor.

A relação de Dodgson com uma menina de 10 anos, aliás, foi a inspiração para a Alice da ficção. Já comentamos sobre isso certa vez aqui. Alice Liddell era uma das três filhas do decano do Christ Church em Oxford, a quem o escritor se punha a entretê-la com suas histórias sobre um inquieto coelho branco, um gato e um chapeleiro louco. Durante um passeio de barco pelo Thames com as pequenas da família Liddell havia tido a ideia de um livro que com o tempo acabaria tendo um imenso impacto cultural.

A carta inédita agora leiloada dá mostra de uma parte da ambígua personalidade de Carroll, submetido a um juízo póstumo que segue sendo objeto de debate entre quem atribui a fixação por Alice a uma conduta de pedofilia; sublinha a hipótese também o desmesurado gosto pelas meninas. Outra parte discorda da proposição. Não há caráter sexual, mas apenas uma obsessão literária por fixar-se na infância eterna a partir de uma amizade com uma criança semelhante a da obra. Fato é que, o perfil humano de Carroll segue sendo uma grande incógnita. Ainda mais quanto quatro dos três volumes de seus diários há muito que são dados por perdidos misteriosamente e sete páginas do que se preservou foram arrancadas possivelmente por seus herdeiros – como se estivessem querendo acobertar alguma coisa. O legado incompleto, logo se vê, só alimenta as especulações sobre uma perversão nunca provada. Nem mesmo em cartas como esta ora vinda a lume. 


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