Fragmentos de um monólogo saudoso: uma leitura do simbolismo em Movimento perpétuo
Por
Daniel Miranda da Silva
Fiama Hasse Pais Brandão. |
A
novela poética Movimento perpétuo de Fiama Hasse Pais Brandão olha para
dentro, descrevendo a vida e o universo de seus personagens a partir do
interior, traçando o entorno e as ações deles como quem descreve a visão de
alguém que sonha. Esse fato já sugere uma leitura simbólica da obra, mas é
apenas um dentre outros fatores, que podem ser enumerados da seguinte forma: 1)
No prefácio, os nomes dos personagens são tratados como uma amostra da essência
deles, como se dissessem quem o personagem é e que papel ele desempenhará na
história; 2) A interação dos personagens com aquilo que os cerca (lugares,
elementos que compõem o cenário e outros personagens) mostra que há, dentro da narrativa,
uma profunda relação entre o mundo físico e o sensorial; 3) Ao longo da
narrativa não se nota grande preocupação em
seguir uma cronologia precisa, mas monta-se uma história contada a
partir de fragmentos da memória e de comentários sobre o laço afetivo do
personagem com aquele momento.
Constatados esses
fatos, considerou-se que um estudo feito com auxílio de dicionários de símbolos
(as obras utilizadas foram a de Juan-Eduardo Cirlot e a de Jean Chevalier e
Alain Gheerbrant), focados na análise das características simbólicas dos
personagens, forneceria uma visão mais adequada da composição da poeta.
Anael
No
primeiro capítulo, Anael entra em cena com Elalisa e Amador. Os três caminham
juntos no Cais do Sodré, até que uma ruptura repentina separa Anael dos outros
dois. Em determinado momento da travessia, Elalisa se separa de Anael,
parecendo que ela caiu no rio. É possível
para ele apenas perceber que “o ruído de água parece Elalisa tombada na
corrente do rio”. Depois de uma série de tentativas de comunicação entre os
dois, ocorre uma suspensão na cena. Na
retomada da narrativa, descobre-se que quem se precipitou do alto do molhe do
cais foi Anael. Neste momento, a equipe de salvamento já havia chegado, mas,
tristeza de seus amigos, Anael estava morto. Elalisa vela o corpo no hospital, onde
é levantada a possibilidade de suicídio. A partir desse ponto da história,
Anael será presença constante nas lembranças de Elalisa.
Para
uma percepção melhor de quem é esse personagem, deve-se atentar para algumas
informações que o texto fornece. No prefácio, ele é chamado de “anjo do amor”.
No dicionário de Chevalier e Gheerbrant, encontra-se uma definição de anjo dada
por Rilke, que se adequa ao perfil do personagem: “o anjo simboliza a criatura
dentro da qual aparece já realizada a transformação do visível no invisível que
nós buscamos.” O anjo seria, então, alguém que realizou uma passagem para um
mundo invisível, mas anelado pelos que vivem no mundo visível.
Com efeito, no caso do personagem, essa passagem seria a
morte que o separa do mundo visível dos vivos, porém o conduz para viver uma
vida diferente nas lembranças de Elalisa e de Amador. Anael, a partir desse
momento, “persistiria” nesta existência através da memória de seus queridos,
como sintetiza muito bem uma das falas mais extensas de Elalisa: “Quando
morreste (...), pouco me apercebi da morte, apenas tanto quanto a gestação de
um filho, em Março, me deixou perceber, diariamente, que havias morrido, na
verdade.”
Elalisa
Como
citado acima, a amada de Anael também faz sua primeira aparição no primeiro
capítulo da novela. Ela presencia a morte sem explicação de seu amado, e passa
uma parte considerável da novela divagando em lembranças sobre o amante para
sempre perdido, que a deixou a espera de um filho. Ela ainda tem de enfrentar
um cisto num seio, o que a leva a refletir longamente sobre a sensibilidade
anulada pela anestesia e a semelhança entre esse momento de inconsciência e a
morte.
Outrossim, com o auxílio de Amador e Erene, tenta sublimar
esses momentos difíceis. Por fim, com o nascimento do filho e a aceitação da
morte de Anael, ela declara que “Passado, portanto, o período do sangue
derramado e dos coágulos, dos estrógenos, mais tarde quando o sono do meu filho
me deixava o meu sono e a vigília em silêncio, pensei apenas que tivesses
morrido como qualquer outra imagem volúvel, e nunca eterna.”
Seguindo
um caminho semelhante ao que foi traçado para ler Anael simbolicamente, pode-se
enquadrar Elalisa numa das definições fornecidas pelos simbolistas. Em Cirlot,
no verbete sobre o símbolo da “Amada”, encontra-se uma citação a Denis de
Rougemont em seu artigo “A pessoa, o
anjo e o absoluto”, que diz o seguinte: “No amanhecer do terceiro dia que se
segue à morte terrestre, se produz o encontro da alma (do homem) com seu eu
celeste à entrada da ponte Chivat... num cenário de montanhas chamejantes na
aurora e de águas celestiais. Na entrada eleva-se sua Daena, seu eu celeste,
mulher jovem de refulgente beleza que lhe diz: ‘Eu sou tu mesmo. ’” Essa
afirmação se coaduna perfeitamente com as palavras iniciais do prefácio:
“Talvez o leitor adivinhe que esta é a tão velha fábula do amador que quer
transformar-se uma vez mais nas coisas amadas – as acções, os factos e as
evocações transformam-se em palavras – e suspeite que os nomes fundamentam a
transformação.” Pode-se dizer, então, que Elalisa, por causa da falta de Anael,
almeja, de alguma forma, transformar-se nele, na tentativa de recuperá-lo. Essa
busca, que se realiza com retorno freqüente de Anael a lembrança dela, finda
quando Elalisa começa a cuidar do filho de ambos. O nascimento e os primeiros
cuidados com essa criança parecem simbolizar uma volta de Anael, a recuperação
do amado que se perdeu. Com essa “compensação”, Elalisa finalmente aceita a
morte de seu amante, que, ao que tudo indica, foi substituído por seu filho.
Amador
Amador
desempenha um papel secundário na história. Como amigo do casal e testemunha do
aparente suicídio de Anael, ele “se apaga numa presença de silêncio, dádiva do
afecto”, servindo como companhia para o luto de Elalisa e para o enfrentamento
do período pré-operatório. Os
dicionários não fornecem um símbolo que se encaixe bem nele, contudo, pode-se inferir
algumas leituras com base no comportamento do personagem.
Em
primeiro lugar, Amador está sempre presente nas situações difíceis vividas por
Elalisa. Além de assistir o fim trágico de Anael, ele também acompanha, com uma
atitude de fraternidade, os momentos que antecedem a cirurgia de Elalisa. Por
tudo isso, pode-se afirmar que Amador encarna a figura do amigo, sempre
disposto a auxiliar os seus nos momentos que os abatem, acolhendo com um abraço
a amada que não encontrará mais seu amante.
Erene
Erene
ou Irene é a personagem menos citada da história. Aparece pela primeira vez
quando acompanha Elalisa, depois que as duas voltaram de um exame feito para a
última. Ela participa de vários momentos, como companheira de Elalisa e Amador,
nos quais a amada de Anael compartilha seus dissabores com seus amigos. No fim,
ela parece ser um reflexo de Amador, alguém posto ao lado como um complemento,
um apoio.
Um último movimento
Um último movimento
Movimento perpétuo transcorre numa espécie de ritmo de um sonho, seguindo ao sabor da memória afetiva dos personagens. Essa novela sintetiza a busca por aqueles que se perdem, que se distanciam do mundo físico, entretanto persistem nas lembranças daqueles que os amam. Há poucos contornos visíveis descritos na narrativa (a história, por exemplo, não provê o leitor com nenhuma descrição da aparência dos personagens), contudo, os sentimentos, receios e ânsias dos personagens são tão bem descritos que chegam a parecer tangíveis. Eles vivem e morrem como todas as pessoas reais: só descobrem o que querem quando perdem.
Daniel Miranda da Silva é graduando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e bolsista (IC-PIBIC) do Professor Márcio de Lima Dantas.
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