Arthur Rimbaud - o protótipo do poeta maldito
Por Andrés Hax
Se alguém quisesse fazer um filme sobre a vida de Arthur
Rimbaud devia por bem começar com duas grandes tomadas que serviriam como
elementos básicos da narração, mas também como chaves simbólicas para ilustrar
a glória e a tragédia do poeta francês que morreu em 1891 aos 37 anos e que
deixou de escrever aos 20.
Uma das tomadas seria com o poeta caminhando. Poderia-se
filmar com a perspectiva desde o chão, a uns quatro metros atrás do caminhante,
mostrando sua andança pelos pastos altos dos campos da França, Itália e
Bélgica. E também pelas ruas pavimentadas de Paris e Londres da segunda metade
do século XIX, acompanhado por seu mentor, amante e companheiro maldito, Paul
Verlaine.
A segunda seria da ponta da caneta de Rimbaud trazendo
palavras sobre folhas em branco. Ali veríamos fazendo seus deveres de latim da
escola primária – foi aluno exemplar do seu colégio provincial – e da redação de
seus primeiros poemas imortais (é um dos poucos casos em que se pode usar este
abusado termo corretamente) que escreveu entre os 16 e 20 anos.
Com essa mesma caneta, muitos anos depois, o veríamos no
deserto na Etiópia fazendo meticulosas contas de bens quando já havia
renunciado a literatura, como leitor e como escritor, no intento de ganhar uma
fortuna como comerciante de armas, especiarias, café e, dizem alguns, escravos –
embora os pesquisadores mais sensatos descartem totalmente esta hipótese.
Durante toda sua vida Rimbaud caminhou e escreveu. Caminhava porque gostava, mas também porque tinha uma mania por viajar e era pobre e
muitas vezes não tinha outra forma de mover-se. E escreveu porque queria
penetrar, através da arte e da poesia, a misteriosa essência da vida à maneira
de um místico.
Em 1871, quando tinha 17 anos, Rimbaud escreveu a seu
professor Georges Izmbard: “Je est un autre” (Eu sou um outro) e nessa mesma
carta declarou seu projeto artístico: “Quero ser poeta e estou me esforçando em
fazer-me vidente... consiste em alcançar o desconhecido pela desordem de todos
os sentidos... E eu tenho me dado conta de que sou poeta. Não é, de modo algum,
culpa minha”.
Em 1878, quando tinha 24 anos, um médico lhe disse que por
caminhar excessivamente suas costelas havia desgastado as paredes de seu abdômen.
Tinha acabado de ir caminhando da Bélgica até Itália, por duas vezes.
Enquanto caminhava, ou nos intervalos de maior calma,
escreveu versos cujos conteúdos e formas eram tão complexos que não puderam ser
compreendidos até muitos anos depois de sua primeira aparição. Enquanto escrevia,
talvez imaginasse viagens que, dada a sua pobreza, só podia se realizar a pé.
Mas o impulso subterrâneo e essencial dessas duas atividades
– caminhar e escrever – é um segredo não detectável e nem descoberto ainda por
nenhum biógrafo. As paixões e frustrações de Rimbaud, seus talentos e buscas,
se podem enumerar e descrever, mas isso não é o mesmo que entender. Apenas podemos
ver sua vida e sua obra, e especular.
Então, estas duas tomadas cinematográficas hipotéticas – a do
caminhante e a do escritor – servem para indagar sobre os mistérios da vida de
Rimbaud, que se pode resumir em duas perguntas.
A primeira: como pode ser que um rapaz de 16 anos, sem
nenhuma preparação particularmente especial, entrou numa linha de
produção criativa durante uns quatro anos, não mais, que o colocou no panteão dos
panteões dos poetas do mundo ocidental, junto a Safo, John Donne, John Keats,
Emily Dickinson e Ezra Pound? E a segunda: Como pode ser que semelhante a um anjo da
palavra tenha abandonado, abruptamente, aos 20 anos aproximadamente, a tarefa
de escrever, como se o que tivesse feito não houvesse significado nada?
Por sua rebeldia contra as normas de seu tempo, tem sido o
ídolo de cantores de rock como Patti Smith e Jim Morrison (e também de inúmeros
adolescentes leitores). Mas, por mais caótica e antiburguesa que tenha sido a
vida de Rimbaud em sua adolescência, a base de seu triunfo como poeta não está
aí, mas na obra construída. Está também no retorno, já ao fim de sua vida, a
valores que o fizeram cidadão respeitável.
Rimbaud foi criado junto com o irmão mais velho e a irmã
mais nova num povoado de Charleville no noroeste da França por uma mãe que se
autodenominava viúva pela ausência crônica de seu marido. Rimbaud foi, de longe,
o melhor aluno na sua escola. Seus professores nunca haviam visto um sujeito
semelhante, a tal ponto que um chegou a dizer dele: “É uma máquina perfeita para
triunfar nas provas.” Daí que haja uma lenda acerca do menino Rimbaud que num
exame extremamente exigente de três horas passou as duas primeiras olhando o
teto e, na última hora, com uma velocidade supernatural, terminou a prova
conseguindo a nota máxima.
Daí a pouco, Charleville estava pequena para o menino que
olhava para Paris. Havia se familiarizado com o ambiente cultural da capital graças
a leitura de revistas que alguns professores conhecidos seus lhe emprestavam. Com
apenas 16 anos escreveu a Paul Verlaine, um dos poucos contemporâneos que o adolescente admirava e que há 11 anos já lhe mandava uns versos. Em pouco
tempo recebeu uma resposta: “Venha, querida e grande alma. Te esperamos. Te desejamos”.
E incluiu um bilhete de trem para a viagem.
Aqui começa a segunda vida de Rimbaud, a qual, anos depois
em Harar, Etiópia, diria que foi apenas
um episódio de embriaguez. Foi isso e muitas outras coisas mais. Verlaine estava
recém-casado, aparentemente, para controlar suas tendências de beberrão e
acomodar-se numa situação financeira estável, já que sua companheira vinha de
uma família que tinha posses.
Sucede que Verlaine vinha de uma família mais complicada. Sua
mãe guardava seus primeiros nascimentos – abortados espontaneamente
– em frascos com álcool numa cristaleira da sala de jantar. Uma vez, num ataque
de fúria no qual lhe pedia dinheiro à sua mãe para ir beber, Verlaine quebrou
os frascos de seus irmãos homúnculos jogando-os contra a parede.
Rimbaud e Verlaine (foto-montagem). |
Rimbaud, com mãos de camponês e modos de um delinquente,
entrou no mundo burguês de Verlaine e explodiu tudo. De golpe, Verlaine e
Rimbaud se tornaram amantes; compunham juntos poemas eróticos e escatológicos sobre o
ânus; fugiram para Londres duas vezes para viver na pobreza; brigavam com facas
para entreter-se; se separavam e se reconciliavam – com viagens mantidas através
da mãe de Rimbaud para acalmar as águas na casa de Verlaine, enquanto Verlaine
tentava voltar para sua vida em família (já era pai) e Rimbaud o tentava
novamente para o caminho maldito.
Entretanto, Rimbaud escreveu seus poemas e Verlaine os seus.
Tudo terminou mal, num episódio tão violento e confuso como
protagonizaram Van Gogh e Gauguin. Verlaine havia se refugiado na Bélgica. Ali estava
num hotel com sua sogra e sua mulher. Desesperado, havia comprado um revólver
7mm. Aí aparece Rimbaud. Brigam, separam-se e Verlaine lhe dá um tiro machucando-lhe
levemente o braço. Mas, no dia seguinte, outro confronto que não terminou em
disparos, mas sim, por uma acusação de Rimbaud, Verlaine foi levado para cadeia, onde ficou por dois anos. A reputação dos dois era infame, e Verlaine, além de ser acusado
de intenção de assassinato, foi submetido a humilhantes provas
pseudocientíficas para comprovar se era ou não homossexual (mediram-lhe a dilatação
anal, a forma do pênis). A homossexualidade era, nesse momento, um ato
criminoso e o juiz determinou Verlaine como culpado.
Nunca se viram mais, embora depois Verlaine tenha sido
fundamental em difundir a obra e a reputação de Rimbaud. Rimbaud, por sua vez,
era depreciado em Paris. Os que o conheciam, consideravam-no um criminoso no
melhor dos casos. Uma etapa de sua vida havia se findado. Com pouco mais de 20
anos, Rimbaud virou as costas para a literatura.
Numa breve mas magistral biografia, Edmund White escreveu: “Há
que enfatizar que Rimbaud se despediu da literatura para sempre. Não escreveu nem
leu mais. Ele olhou para o seus anos de criação (dos 15 aos 19 anos) como um
tempo vergonhoso, um tempo de bebedeira, de escândalo homossexual, de arrogância
e rebelião que o levou a nenhum lado”.
White também escreve uma útil síntese sobre a obra de
Rimbaud: “O que é mais extraordinário é que em sua breve carreira como escritor, Rimbaud cobriu a história completa da poesia, desde versos em latim, passando
pelos românticos, o parnasianismo, os simbolistas até o surrealismo, mesmo antes
de existir o surrealismo”.
Um dos registros de Rimbaud na África. |
E aqui começa a terceira vida de Rimbaud, como comerciante
na África. Somente nesta etapa foram escritas várias biografias. Em todas, os
autores lutam para reconciliar o poeta com o homem de negócios. Os únicos livros
que Rimbaud pedia a sua mãe na África – nunca perdeu o contato com ela, sempre a
exigiu e a procurou – eram de engenharia, geologia e ciências exatas. Nunca conseguiu
a fortuna que buscava. Nas poucas ocasiões nas quais foi recordado por seu
passado como escritor, reagia como se estivesse falando com de um estranho.
À parte de sua revolucionária obra e sua tumultuosa vida, a existência
de Rimbaud nos deixa com uma inquietante certeza: escrever bem – escrever com
um anjo (!) ou como um demônio (!) – não é suficiente para alcançar a paz.
A última tomada de nossa película é de Rimbaud numa cama, de
volta a França, num hospital em Marselha com a perna amputada. Já não é um
menino gênio. Se não fosse por seus olhos azuis cristalinos passaria por um árabe.
Suas caminhadas estavam terminadas e seus versos esquecidos num passado remoto.
O homem tem 37 anos e está no fim, à beira da morte. Suas botas e sua caneta não
lhe servem mais.
* esteve texto foi publicado inicialmente em Revista Enie.
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