Um Cortázar invisível



No ano em que se comemora 30 anos da morte e 100 anos do nascimento de Julio Cortázar, entre a série de atividades que são organizadas ao redor do mundo em torno da obra e do nome do escritor está a aparição e publicação de inéditos. Segundo estudiosos da produção escrita do autor de O jogo da amarelinha, os tais inéditos são mais vastos que sua obra já publicada e parte deles ficaram pronto para edição; mas há outra que segue sendo recuperada. Aurora Bernárdez, companheira do escritor,  tem se dedicado neste trabalho sem pressa, mas sem pausa. Se Borges, resolveu anotar todos os livros da Biblioteca Nacional para deixar uma pegada deliberada de sua leitura; se Bioy Casares, por sua vez, editou seu vasto diário literal como uma louça capaz de culminar seu parricídio de Borges; Cortázar, ao contrário, parece haver escrito nos vários pisos de sua torre de Piranesi. Só que, assombrosamente, com a gratuidade fervorosa que define sua relação com a escritura, não parece haver escrito para publicar outro livro nem tampouco para que nada desses papeis seja lido. Fez muito bem Aurora em chamar a primeira compilação desses escritos de Papeles inesperados (publicado na Argentina e ainda inédito no Brasil).

O título tem uma imediata precisão sua, esse ligeiro sobressalto de estirpe cortazariana: anuncia que estes textos são papéis soltos mas que sua publicação é imposta por eles mesmos. Não se podia ter chamado Libro inesperado, porque o que aí não há é uma unidade bem acabada ou mesmo uma desordem planejada pelo autor. São recolhas. Se formos para as peças soltas que dão forma, por exemplo, ao romance mais famoso seu, O jogo da amarelinha, não se pode dizer que a literatura de Cortázar é causal, tampouco casual. Tem outra lógica de produção: não conhece princípio nem final, mas é um ato completo, não um processo. É, enfim, um evento: não tem linhagem e não propõe nem demanda.

Recentemente, Aurora Bernárdez revelou que Julio deixou alguns livros inéditos, uns que ela tem publicado, outros ainda por vir, porque entendeu que não eram rascunhos, mas livros de verdade que Cortázar havia hesitado em publicá-los. Mesmo que isto tenha causado certo desconforto nas editoras quando se propuseram a fazer uma edição com a obra completa do escritor. Fora os dois tomos de romances e um de contos, como por em ordem esse material que resiste aos imperativos da classificação editorial? A biografia de Keats, por exemplo, é uma caixa de papeis soltos, todos escritos à mão, e está na biblioteca de raridades de Harvard. É impossível imprimi-la, salvo como livro-arte, mas isso pertenceria a um museu, que este objeto, exemplar único, é uma sorte de liberdades da escrita. O caso do escritor argentino é semelhante.

Até a algum tempo ninguém imaginaria que sua correspondência ocuparia cinco tomos; que cada carta é mais que uma carta: é quase um diário, uma biografia da escrita e postula uma tribo de interlocutores. Bastaria, portanto, chamar isso, de miscelânea, às várias formas de escrita pelas quais transitou?

Na década de 1970, os leitores de Cortázar dividiam-se bem em duas tribos distintas e alheias: uma, preferia os contos; outra, O jogo da amarelinha. E o escritor estava intrigado pela inimizade entre as tribos que planejou uma ideia e tentou amadurecê-la: de que aquele romance pelo qual um grupo brigava não era um romance, mas muitos. Mas havia um que era o romance de Morelli. Julio Ortega relembra que deu a ideia a Cortázar de reunir as Morellianas mais outros textos seus sobre o conto num pequeno e precioso tomo que fosse uma espécie de manual secreto por vir da narrativa. Julio sempre foi um entusiasta com esta sorte de variáveis e variações de gênero, surpreendentemente, lhe disse: “Mas essa caixa de Morelli é tua, é um livro do qual és autor, terás de assiná-lo.” No mesmo instante, Ortega interroga o escritor, como isso seria possível, como fazer um livro que foi escrito por Julio e não por ele. Cortázar apenas o encarou em silêncio e respondeu: “Então o fazemos nós dois.”

Superado esse impasse, dez anos depois Ortega então professor na Universidade do Texas ficou responsável pela aquisição dos manuscritos de Cortázar. Preparou na ocasião uma edição de O jogo da amarelinha para a coleção Arquivos de Paris. E encontrou em meio aos papeis, que Cortázar havia ensaiado oito sequências distintas de uma série de fragmentos: segundo às personagens, em números arábicos e romanos, a partir de cores... Buscava organizar um romance que chamou Mandala até que entendeu que a narrativa era outra: no todo escrito, havia de deixar em cada fragmento um resumo para que partindo de um princípio combinatório oferecesse outras possibilidades de leitura; ou seja, estaria aí uma reprodução do jogo que sustentava seu romance maior – a liberdade do homo ludens. “Meu interesse é buscar”, escreve Cortázar. Picasso em resposta contrária poderia ter lhe dito como certo tom de ameaça: “Eu não busco, encontro”.

Além do mais, a chegada dessas novidades até aos leitores deve servir para demonstrar que a obra visível de Cortázar é feita graças a sua obra invisível ou inesperada. Ela convoca a uma releitura do que foi publicado com uma cumplicidade: ler, parece nos dizer, é lermo-nos. Esta é, como diz Ortega, uma operação delicada, de aprendizagem e atenção, que há que saber compartilhar a fim de que possamos nós mesmos criar uma tábua de instruções para lê-lo. E o que tudo isso, afinal, revela é que escrever é um exercício para o qual o escritor deve está disponível. Que é tarefa do escritor fazê-la como um ato de comunicação plena. Essa consciência formal remete uma crítica ao realismo e a reafirmação do espaço interior (onde todo esse exercício é gestado) como a fonte de “produção da escrita”. Isso, entretanto, é um debate eternamente postergável que foi ampliado com a literatura de Cortázar, mas segue causando seus efeitos, positivos e negativos, para a literatura e a relação do leitor com os livros.


* Este texto se beneficia das ideias de Julio Ortega publicadas na revista Ñ.

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