Pequenas rotinas, grandes mentes (Parte 1)


Haruki Murakami numa parte de seus rituais diários. Acordar cedo, escrever, e correr.


Picasso pedia a suas musas que, por gentileza, só o visitassem quando estivesse em seu atelier e trabalhando. Com manchas na camisa listrada e os pinceis preparados para aproveitar a inércia dessa coisa chamada inspiração. Porque por mais pura que se apresente a arte, dedicar-se a pintar, escrever, fazer canções ou fotografia têm muito da rotina, de hábito e obrigação imposta do artista para si próprio. “Sê monótono e ordenado em tua vida como um burguês para que possas ser violento e original em tua obra”, dizia Flaubert, por certo, todo um senhor burguês.

William Burroughs tinha muito claro que estava obrigado a fazer uma mudança nesse trabalho raro: “O preço que um artista tem que pagar por fazer o que quer fazer é que tem que fazê-lo”. Mas, qual era a fórmula (se há) dos crânios privilegiados da História para convocar musas e pagar essa hipoteca? O jornalista Mason Currey tomado pela curiosidade, em 2007, começou a compilar num blog diário as manias e os horários de artistas e nomes da ciência. O blog foi engordando até ser transformado em livro e publicado recentemente na Espanha com o título Rituales cotidianos (Rituais cotidianos, em português). Este texto recortará algumas das situações descritas no catatau de curiosidades compiladas por Currey.

1. Dormir é o melhor (e o mais barato) afrodisíaco criativo. Ao menos para os grandes dorminhocos nessa história, como Descartes (mais de 10 horas) ou William Styron. Mas, há um madrugador: Balzac. Quando estava imerso em algum grande livro seu horário de trabalho era o das manhãs. Jantava pontualmente às seis da tarde e ia cedo para cama. A uma da manhã já estava de pé. Ia para seu gabinete e ali passava até sete horas seguidas entre tinta, papel e xícaras de café preto, uma após outra.

Os compositores clássicos também se rebelaram contra o sono excessivo. Beethoven, Mahler ou Schubert levantavam-se logo ao amanhecer. Dentre os vivos, o recorde é para Haruki Murakami. O autor de 1Q84 passou de gerente de casa noturna de jazz em Tóquio a um asceta vegetariano. Desde então, se levanta às quatro da manhã, trabalha cinco a seis horas seguidas e logo vai para sua corrida diária.

2. Banhos de ar. Thomas Wolfe, o escritor mais estadunidense e o menos reivindicado da geração perdida, descobriu uma noite seu infalível método criativo. Currey conta no livro que numa hora pouco inspirada Wolfe se deu por vencido e tirou a roupa para se deitar. Então, nu em frente à janela descobriu que seu cansaço havia se evaporado de repente. Se sentia renovado e com ganas de escrever de novo. Regressou à mesa e escreveu até o amanhecer com assombrosa rapidez, facilidade e segurança. Depois, tentando decifrar o que havia provocado aquela mudança súbita, se deu conta de que, de frente para a janela, o ar acariciando inconscientemente os genitais e aquilo o induzia a uma “agradável sensação masculina”, reavivava suas energias criativas. Desde então, Wolfe utilizou regularmente este método para iniciar suas sessões de escrita.

Não sabia Wolfe (talvez) que esse seu hábito favorito também tinha admiradores de peso, como Benjamin Franklin. O estadista conterrâneo do escritor registrou em seus diários os pormenores sobre o gosto: “Levanto-me cedo quase todas as manhãs, e me sento em meu quarto sem roupa, meia hora ou uma hora, a depender da estação do ano, e fico lendo ou escrevendo. Esta prática não é em nada dolorosa, pelo contrário, é muito agradável”.

Ingmar Bergman, trabalho, trabalho e mais trabalho


3. Kant nunca saiu de sua cidade natal, onde lecionou no mesmo curso durante 40 anos. Seu criado o levantava às cinco da manhã. Almoçava sempre à mesma hora e às 15h30 fazia sua famosa caminhada, pela qual as senhoras de seu povoado acertavam seus relógios. Ia para cama exatamente às 22h. Não teve muitas amigas e apenas um amigo íntimo com quem jantava de vez em quanto. Seus biógrafos, entretanto, têm lutado ultimamente para desfazer a imagem de homem-robô do filósofo alemão: dizem que Kant era um farrista, vez e quando bebia tanto vinho que perdia o rumo de casa... Mas, o fato é que uma enfermidade, um defeito congênito em sua caixa torácica que lhe comprimia o coração e os pulmões, fora um dos responsáveis pela vida rotineira. Kant renunciou ao corpo e se dedicou a criticar a razão pura.

Ingmar Bergman criou dezenas de filmes e obras para o teatro, fez ainda séries para a TV sueca, escreveu óperas e vários romances. Os temas são sempre os mesmos: incomunicação, solidão, religião, amor, morte, loucura. “Tenho trabalhado durante todo o tempo e como uma grande torrente que atravessa a paisagem de tua alma”, explicou certa vez. “É bom porque proporciona muitas coisas. É purificador. Se não houvesse estado trabalhando todo o tempo, haveria sido um lunático”.

Faulkner, um cachimbo, um uísque, um cochilo


4. Antes de recolher-se numa velha propriedade meridional com sua mulher e whisky, Faulkner combinou vários trabalhos com a criação de seus romances. Foi jornalista, pintor e carteiro. Escreveu um de suas maiores obras, Enquanto agonizo, durante as tardes antes de fechar o turno da noite como supervisor de uma planta elétrica. O horário noturno lhe caía bem: dormia umas poucas horas pela manhã e escrevia toda tarde. Do caminho para o trabalho visitava a sua mãe e dava alguns cochilos durante o turno.

Kafka trabalhou toda sua vida numa companhia de seguros em Praga, de oito às três da tarde. Vivia com sua família num apartamento apertado, onde somente podia escrever pela noite. Trabalhava até às três e às vezes até às seis. “Então, geralmente, com uma leve dor no coração, estômago, músculos pulsando, eu vou para cama. Faço todos os esforços possíveis para tentar dormir, ou seja, para alcançar o impossível, porque você não consegue dormir.”

Alice Munro em 1957, trabalho e filhos.


5. Só ao fim da vida, já separada de seu marido e cuidando sozinha de seus filhos pequenos, Sylvia Plath alcançou uma rotina que o fazia ser uma poeta produtiva. Às cinco da manhã, quando terminava o efeito dos soníferos, se levantava e escrevia até que os meninos se levantassem.

A Alice Munro o encanta as sestas de suas filhas. Quando elas dormiam, se trancava em seu quarto para escrever. Toni Morrison dividia seu emprego como editora na Random House com suas aulas na universidade e os cuidados de seus dois filhos. “Quando me sento para escrever nunca me ponho a dar voltas. Tenho tantas coisas que fazer que não posso me permitir a isso”. A recompensa de tanto esforço serviu a uma o Prêmio Nobel, a outra um Pulitzer.


*Este texto é uma tradução livre para "Pequeñas rutinas de las grandes mentes", de David M. Pérez, publicado no blog Icon.


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