Passagens inéditas de “A colmeia”, de Camilo José Cela
Por Winston Manrique Sabogal
“Lola abre de uma só vez os botões da braguilha. O vendedor freme como um cerdo castrado, com os olhos brancos, caído de costas.
- Golfo!
Lola descobre o sexo do homem, pequeno e branco como uma criatura.
- Gosta, porco, gosta?
- Deixe-me! Deixe-me!”
Só uma pessoa sabia que esta passagem escrita originalmente por Camilo José cela para A colmeia. Ninguém mais tinha conhecimento que o conteúdo sexual e erótico de sua obra mestra fora mais alto e descarado que o publicado até hoje. Nem mesmo o regime franquista supôs qualquer coisa porque o escritor suspeitava que não ia passar pela censura e decidiu não incluí-lo na versão que enviou para aprovação.
Agora, setenta anos depois de Cela começar a escrever (terminaria a obra em 1950) e depois de sucedido os feitos narrados em seu romance, apresenta-se um conjunto de passagens, todas inéditas, algumas censuradas pela ditadura, outras pelo próprio escritor que nunca chegou aos olhos do leitor. No que isso poderia resultar? Numa reescrita de A colmeia. Por enquanto fragmentada, mas que poderá servir a uma edição mais completa, como foi concebida originalmente.
O manuscrito apresentado à Biblioteca Nacional de Madri revela outros recortes de vida desse enxame de personagens criadas por Cela que agora vem a lume graças à doação de Annie Salomon (pesquisadora em literatura hispânica), filha do hispanista Noël Salomon. Ele era a única pessoa em questão que teve conhecimento desse inédito. Era amigo do escritor, e Cela enviou este texto com a ideia talvez de, pensando no impacto da censura franquista, querer preservá-lo para adiante. O manuscrito chegou às mãos de Adolfo Sotelo Vázquez, professor de História da Literatura Espanhola, pesquisador da obra de Cela e biógrafo do escritor. Durante as pesquisas para a composição deste texto, Adolfo Sotelo encontrou uma leitura sobre A colmeia que dizia ser este um romance que ataca ao dogma, à moral, não ao regime e era um texto de escasso valor literário.
São ao todo dez folhas numeradas pela BN e outras páginas soltas em branco. O manuscrito é heterogêneo e fragmentado. A maioria das folhas estão datilografadas e várias corrigidas à mão e riscadas pelo autor com seu lápis vermelho. As censuradas pelo franquismo com grafite. O grosso do manuscrito é a parte da cópia que o escritor apresentou à censura em 1946 com a intenção de ceder o original a F. Maristany das Edições Zodíaco para sua publicação.
“...O homem fala com um fio de voz, treme todo o corpo, estremece, se contorce. Respira violentamente com os olhos fechados, a boca aberta e seca, a cabeça caída. Um tremor mais forte corre-lhe pela espinha. Queixa-se, diz entre dentes algo que não se entende, e cai como morto. Um suor muito frio emana de sua testa...”
Isso foi o que Annie Salomon encontrou quando colocou à venda uma casa de campo da família próximo de Bordéus; o pai havia morrido há trinta e cinco anos. Quando uma manhã começou a limpar o local encontrou um armário de madeira com objetos familiares, caixas de fotografias e entre essas recordações uma pasta marrom que tinha escrito à mão Caminhos incertos, outras anotações e pelo meio o nome de Cela. Ela se surpreendeu. Depois de abrir a pasta seu coração pareceu palpitar mais rápido ao ver uma série de folhas amareladas pelo tempo de sessenta anos de quando foram guardadas. Páginas escritas em máquina com anotações, revisões, anexos e folhas manuscritas. Não sabia muito bem o que era. Ela havia lido A colmeia e sabia que isso correspondia ao estilo de Cela. Três anos esteve pensando o que fazer com essa descoberta, até que em maio falou com a Biblioteca Nacional de Madri e doou o manuscrito à instituição.
Era A colmeia original. Como Cela pensou. Antes de chegar ao valor do manuscrito Sotelo Vázquez fez uma pesquisa sobre os primeiros passos de composição da obra. Alguns minutos da gênesis dessa história encontra Camilo José Cela relatando os escombros dos sonhos dos espanhóis depois da guerra. Foi um dos primeiros escritores a tratar a realidade do país logo depois do fim da Guerra Civil. A colmeia é um mosaico da sociedade espanhola em seu estado físico, emocional e espiritual. Recria os três dias de 1943 na vida de mais de trezentas personagens. A maioria deles de classe média baixa e de uma burguesia em extensa queda na desgraça. Cela fez um corte em linha da vida em Espanha representada numa cidade através dessa galeria de figuras que o único que têm em comum é a asfixia do presente e a incerteza do futuro. Uma obra que foi publicada em Buenos Aires em 1951 (também com algumas passagens censuradas pelo peronismo) e finalmente em Espanha quatro anos depois.
“...A mulher o solta e cai sobre a cama, boca para cima, com os coxas abertas, escondendo o entrepernas com as mãos. Dona Celia sai, desnuda, detrás da cortina e se joga sobre Lola, lambe-lhe todo o corpo. Lola a deixa fazer. Cobre a cabeça com a almofada e mete-lhe um dedo num cu. Sobre a casa o respirar das duas mulheres: o de Lola, esgotado, ansioso o de dona Celia, que caída sobre as telhas fazendo-se uma palha...”
O manuscrito permanecerá na BN. A Fundação Camilo José Cela cedeu os direitos para seu estudo. A edição completa com as passagens inéditas e censuradas pode vir a lume no ano do centenário do escritor, 2016.
A história que começa no café Delícia, de dona Rosa, guardava mais segredos e verdades que os conhecidos até hoje. Essa história com mais penúrias, mais fofocas, mais retratos da realidade, mais desejos, pulsões e desafogos da paixão e do sexo e de gente mendigando alegrias está agora na BN com passagens desconhecidas com as apresentadas aqui e termina dizendo:
“... O home dos alhos, sujo, derrotado, com a cara em sangue e a roupa rasgada, geme estirado no soldo.”
“Pierrot aranha a porta da alcova, ninguém faz caso...”
Ligações a esta post:
* Este texto (inclusive as passagens da obra) é uma tradução livre para "La Colmena", de Cela, inédita, erótica y censurada, ve la luz" publicado no jornal El País.
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