Os caminhos de Isaías ou três voltas sobre o mesmo parafuso (Parte II)
Por Alfredo Monte
2. O espaço
...Sua experiência da multidão comportava os
restos da iniquidade e dos milhares de encontrões que sofre o transeunte no
tumulto de uma cidade e que só fazem manter tanto mais viva a sua
autoconsciência...
Walter Benjamin, Charles Baudelaire – Um lírico no auge do
capitalismo
Quando não há muita árvore e muita água a
terra de vocês é feia! É preciso que haja muita, muita, para que ela seja
bonita...
Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha
No mais que
referido capítulo VI de Recordações...,
ainda próximo ao mar “convidativo” em seu apelo nirvânico, Isaías observa os
bondes que passam, que “subiam vazios e desciam cheios”. Observa os olhares de
desdém dos ingleses com relação aos brasileiros e o olhar desgostoso dos
passageiros quando o avistam:
Eu não tinha nem a
simpatia com que se olham as árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não
encontravam o menor eco fora de mim. As plumas dos chapéus das senhoras e as
bengalas dos homens pareceram-me ser enfeites e armas de selvagens, a cuja
terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio. Nós não nos entendíamos: as
suas alegrias não eram as minhas; as minhas dores não eram sequer percebidas1...
Por força, pensei, devia haver gente boa aí... Talvez tivesse sido destronada,
presa e perseguida; mas devia haver... Naquela que eu via ali, observei tanta
repulsa nos seus olhos, tanta paixão baixa, tanta ferocidade (...) tive ímpetos
de fugir antes de ser devorado... Só o mar me contemplava com piedade,
sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações no meio da sua imensa
massa líquida...
O trecho acima é, a
meu ver, um notável confronto entre imagens apocalípticas e imagens demoníacas,
seguindo a conceituação de Northrop Frye. Por um lado, o demoníaco que veio se
abatendo sobre Isaías (abatendo-o), ao longo de toda a ação anterior e que irá
continuar seu ato de “devoração” na sequência da história: a cidade
indiferente, a multidão ameaçadora, trazendo à mente a imagem sacrificial do
bode expiatório (o pharmakós),
símbolo do “sparagmós”, o dilaceramento do personagem, cujas dores “não eram
sequer percebidas”. É o mundo da experiência (compreendido na grande síntese
demoníaca que é a alienação), o qual abriu fissuras no desejo absoluto,
“napoleônico”, expresso no primeiro capítulo. Por outro lado, no mesmo
movimento (e por isso é tão bela a passagem), vindo justamente após o narrador
passar ao leitor as ideias de ferocidade e possibilidade de devoração, a grande
imagem apocalíptica do mar, com sua aura de apaziguamento e inocência, uterino,
restaurando provisoriamente o mundo do desejo.
Isaías, todavia,
não pode subtrair-se ao mundo da experiência e cairá (como Frye alerta tão
eloquentemente, os mitos são deslocados: sim, será uma descida aos infernos;
ou, ainda, um mergulho no Letes, rio do esquecimento — de qualquer forma, o
sempiterno mito da queda) no mundo da produção.
Para o autor de Anatomia da crítica as ideias
estruturais do “imitativo baixo” (a grande seara do Realismo, embora se possa
encontrar em Recordações do escrivão Isaías
Caminha a inequívoca seta para o modo “irônico” — aliás, tanto no sentido
de Frye quanto no lukácsiano) são a gênese e o trabalho. A gênese está presente
no ato criador de Isaías, é o seu grito dentro do silêncio ameaçador da
multidão, de certa forma seu “mergulho” simbólico no mar apaziguante; já a “profissão”
é um dos elementos norteadores do romance (a partir do título) — de passagem, é
possível apontar o desconforto de Isaías enquanto “estudante” (daí eu ter
utilizado o adjetivo ambíguo anteriormente com relação a esse “estado civil”,
por assim dizer) —, e o trabalho na grande imprensa concentrará,
metonimicamente, toda a força demoníaca da cidade (Benjamin: “Dificilmente a
história da informação pode ser escrita separando-a da história da corrupção da
imprensa”).
Só no final do
romance aparecerá nova indicação da analogia apocalíptica com a inocência. Nas
palavras de Frye, “o mundo demoníaco é uma sociedade unida por uma espécie de
tensão molecular de egos, uma lealdade ao jugo do chefe que diminui o
indivíduo”. O que caracteriza o clima da redação de O Globo, onde há o chefe “tirânico” (Loberant) que se liga ao pharmakós (Isaías) numa relação que
afasta o último ainda mais nitidamente de seus objetivos primordiais,
propiciando a aparição dos seus dois avatares contraditórios no presente da
narrativa (o escrivão e o escritor). Porém, com o mesmíssimo Loberant (e mais
uma prostituta italiana), Isaías viverá uma experiência que, trazendo a
nostalgia do mundo do desejo, dar-lhe-á força para cortar o laço demoníaco (tal
libertação é provisória, a julgar pelas repetidas alusões ao coletor, seu
chefe, no presente da narrativa, e com quem parece ter reproduzido
dissimuladamente sua ligação com Loberant): Leda, a italiana, quer ir para um
lugar “sem gente conhecida”, e o trio dirige-se à Ilha do Governador, onde
começam a andar meio a esmo: “o doutor estava apreensivo, eu resignado e Leda
contente, recordando talvez a sua infância de campônia”.
À medida que
adentram no território da ilha, o lugar leva Isaías à autoconscientização: “...
lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito? Que
emprego dera à minha inteligência e à minha atividade? (...) Lembrava-me de que
deixara toda a minha vida ao acaso e que não a pusera ao estudo e ao trabalho
com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de
falta de decisão, e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres...”
Em meio a esse
momento de introspecção, que abre uma fissura no companheiro satisfeito e autocomplacente
(ainda que subalterno) do diretor do jornal, o trio retorna ao Rio, onde está
acontecendo um tumulto, uma aglomeração, por conta da prisão de uma mulher
(mais um pharmakós da cidade
grande?), a quem Isaías conheceu no passado, justamente quando ainda alimentava
as maiores ilusões com relação ao seu destino.
Nesse momento a
cidade torna a fechar-se sobre ele, a cidade que conhecera por etapas
iniciáticas que nunca configuraram um todo, um sentido, sempre constituíram
descensos no seu destino anunciado, proclamado mesmo, no primeiro capítulo (em
certo sentido, Recordações... é um
romance irônico de de-formação).
E assim, retorno do
espaço coletivo para o “herói” individual, cujo último avatar (após ser o
estudante futuro doutor, o contínuo e o jornalista pau pra toda obra) é ser double: escrivão-escritor.
Notas:
1 Perceba-se que o lado da alegria fica para os Outros; para ele, o lado das
dores.
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