Os caminhos de Isaías ou três voltas sobre o mesmo parafuso (Parte I)
Por Alfredo Monte
Bem aventurados os
tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão
abertos e que têm de seguir!
George Lukács, A
teoria do romance
Antes de entrar,
olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa
humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos.
Lima Barreto, Recordações
do escrivão Isaías Caminha
Preâmbulo
No sexto capítulo
de Recordações do escrivão Isaías Caminha,
o narrador interrompe o fio da sua história passada para comentar sua situação
no presente da narrativa e refletir sobre o livro que escreve e que o incomoda.
No final do capítulo anterior explodira sua revolta pelas decepções sucessivas
no Rio de Janeiro, a última das quais foi ser apontado como suspeito de um
roubo ocorrido no hotel onde se hospedara. Defendendo-se na entrevista com o
delegado, Isaías, mulato, alegara ser estudante e aquele expressara, então, sua
descrença e escárnio: “Injustiças, sofrimentos, humilhações, misérias,
juntaram-se dentro de mim, subiram à tona da minha consciência” e ele vitupera
o delegado como “imbecil”, indo, claro, para o “xadrez”.
A quebra do relato
proporciona ao momento na cadeia um forte timbre iniciático, um rito de
passagem que realça a transformação moral de Isaías: do jovem que sai de casa
para ser “doutor” ao mulato chamado de “malandro” e “gatuno” pelo delegado.
Meu objetivo é
analisar o romance de Lima Barreto a partir da convergência evidenciada no
referido capítulo VI de três aspectos de uma mesma problemática: a formação do
herói, a revelação do espaço urbano e o uso do romance como “confissão”,
valendo-me das teorias de Lukács (A
teoria do romance), Frye (Anatomia da
crítica) e Marthe Robert (Roman des
origines et origines du roman).
Embora tenha dividido a empreitada em três partes, por razões de
clareza, isso não significa que sejam estanques, longe disso.
1. O herói
“No romance,
sentido e vida separam-se e, com eles, essência e temporalidade; poder-se-ia
quase dizer que no que ela tem de mais íntimo, a totalidade da ação do romance
não passa de um combate contra as forças do tempo. No Romantismo da Desilusão o
tempo é um princípio de depravação (...) É por isso que todo o valor é aqui
atribuído ao que é vencido, ao que, por isso mesmo que deperece (sic)
progressivamente, mantém o caráter da juventude em via de estiolar, e é ao
tempo que se reserva toda a brutalidade, toda a duração daquilo que não tem
ideias...” (Lukács, A teoria do romance¹)
Quando, ainda no
sexto capítulo, o narrador retoma o fio do relato, conta-nos que, liberado pelo
delegado, resolve deixar de lado a ambígua’ condição de “estudante” (mesmo
porque sua situação financeira aperta). Apavorado pela perspectiva da miséria,
resolve tornar-se um trabalhador comum, sem sucesso. Tem a “sensação de estar
num país estrangeiro” e, debruçado na muralha do cais, sofre a tentação de se
jogar ao mar, “dissolver-se nas suas águas infinitas sem vontade nem
pensamento”². A “potência da vontade” (título do livro de cabeceira de Isaías)
degrada-se em inércia (a mesma que o levará ao mundo da imprensa), por força da
amorfia do destino.
O Romantismo da
Desilusão é, para Lukács, a inadaptação do herói cuja realidade interior entra
em concorrência com a realidade externa (a sociedade dominada pelas
convenções). O romance, como forma, descamba para a análise psicológica e o
“lirismo” (representação de estados da alma) ressignifica o estatuto épico da
necessidade e possibilidade dos atos heroicos.
O paradigma para o
drama de Isaías seria, à primeira vista, Ilusões
perdidas, de Balzac. Mas a “essência estiolada” do herói de Lima Barreto já
está num ponto mais crítico e abebera-se muito mais do universo flaubertiano, o
qual representa uma radicalização quase dissolvente no estreitamento e
amesquinhamento do campo de ação das personagens. Pois em Balzac e Stendhal,
não obstante o demonismo das forças sociais, a aventura da ascensão social e os
mistérios da metrópole permitem ainda uma subjacente “estória romanesca”
(afinal, Rastignac encontra Vautrin...).
Embora o Rio (ou
pelo menos, um certo Rio) se descortine para Isaías, ao longo de Recordações...,
isso não o leva a nenhuma “aventura”; de fato, não há continuidade nas figuras
emblemáticas que ele conhece e que lhe apresentam aspectos da vida urbana, como
Leiva, o dândi revolucionário (depois jornalista), levando-o tanto a palestras
sobre o Positivismo quanto ao Passeio Público. São instâncias episódicas,
fragmentárias, que apenas evidenciam o estreitamento do horizonte e o
isolamento de cada personagem, o que se acentuará quando Isaías conviver com os
membros da redação de O Globo, momento
em que a individualidade do herói-narrador estará tão “esmagada”, triturada
pelo mundo da experiência, que ele praticamente “some” por páginas e páginas,
limitando-se a observar (só voltando ao primeiro plano ao ingressar no corpo de
repórteres)³.
A passividade do
herói, malgrado os momentos de revolta (impotente), parece coincidir com a
representação do mundo flaubertiana segundo Erich Auerbach, que a contrasta
com a balzaquiana: “A vida não mais ondula e escuma, mas flui viscosa e
pesadamente. Para Flaubert, o peculiar dos acontecimentos quotidianos e
contemporâneos não parecia estar nas ações e nas paixões muito movimentadas,
não em seres ou forças demoníacas, mas no que se faz presente durante muito
tempo, aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão...”
Talvez se possa
objetar que, embora medíocres, envolvidos pelo mundo das “ilusões, hábitos,
impulsos e chavões” (a famosa bêtise),
figuras como Loberant, Gregoróvitch ou Floc acabam por ajudar, dentro do
processo de um “romance de formação”, Isaías a atingir certos patamares
iniciáticos e de compreensão do mundo. Mas contra essa perspectiva otimista (e
a própria ideia “formativa”) há o fundo bovarista que persiste no herói.
Lembremos que o próprio Lima Barreto tinha uma concepção muito clara de bovarismo:
uma pessoa ou país se representar aquilo que não é (uma das bases, aliás, do
ufanismo). Isaías padece desse mal. Desde criança, sentia uma “desigualdade de
nível mental” com relação ao meio família, uma “necessidade de ser diferente”
que o faz almejar a capital, para atingir a sua “majestade de homem”. Tal visão grandiosa de si mesmo, ainda que
confrontada com a dura realidade, subsistirá (e será um subtexto amargurante e
irônico do Isaías-narrador).
No mesmo dia em que
é preso, ele encontra Gregoróvitch e, durante o almoço, o exaltado estrangeiro
lhe fala de “poetas e filósofos”: “Traçou, a grandes golpes, o destino da
humanidade, provocou-me grandes e consoladoras visões patrióticas”4.
Na sequência, ao voltar para o hotel, recebe a intimação. Portanto, a ideia
íntima que faz de si (e que poderia ser exaustivamente exemplificada (e que
justifica seu ofuscamento inicial com o mundo jornalístico, o complexo
napoleônico que assombrou todo jovem imaginativo de um certo período do Ocidente,
acaba sendo ridicularizada e degradada pela teia dos acontecimentos.
No Rio de então
preparam-se grandes transformações na fisionomia urbana, as quais expressam um
desejo de ajustamento de passo (nem que seja por retoques na maquiagem) com o mundo
capitalista, porém o herói não participa, a priori porque já é um excluído
(pela cor e pela condição social), mesmo que ilusoriamente, ao enfronhar-se na
grande mentira da imprensa, pareça ter essa possibilidade no seu horizonte; ao
fim e ao cabo, retira-se do jogo, como homem (e como escritor, como veremos).
Assim a vida “ondulante e escumante” metamorfoseia-se em “vida viscosa e
pesada”.
1 Utilizo a tradução portuguesa de Alfredo Margarido.
Observe-se que, numa formulação bem diferente, as noções de depravação da
temporalidade (mundo da experiência) e do sacrifício da essência (mundo do
desejo) apresentam afinidades com a caracterização do “demoníaco” (inclusive
com a “vítima sacrificial”) de Northrop Frye em Anatomia da crítica.
2 Esse desejo tem um quê de retórico, em certo sentido:
muito mais do que a perspectiva de suicídio, parece interessar ao narrador
transmitir a sensação de aniquilação de um sonho.
3 Todas essas considerações me levam a pensar nas
brilhantes afirmações de Auerbach acerca dos personagens de Flaubert, no seu Mimesis: “O que acontece com estes dois
[Emma e Charles] vale para quase todos os personagens do romance. Cada um dos
muitos seres medíocres que nele se movimentam tem o seu próprio mundo de estupidez néscia, um mundo de ilusões, hábitos,
impulsos e chavões; cada um está só, nenhum pode compreender o outro, nenhum pode
ajudar o outro a atingir a compreensão...” (trecho do capítulo “Na mansão
de La Mole”, grifo meu).
Benjamin, no seu ensaio sobre a Paris do Segundo Império,
afirma por sua vez: “Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de
cada indivíduo em seus interesses privados, avultam tanto mais repugnantes e
ofensivos quanto mais esses indivíduos se comprimem num espaço exíguo...” (ver Charles Baudelaire – um lírico no auge do
capitalismo).
4 Essa característica de Isaías faz lembrar os
colóquios e efusões entre Ema e Léon, em Yonville, antes da partida dele,
quando são os “sensíveis” da pequena cidade.
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Eloisa Helena